Educación Física y Ciencia, vol. 24, nº 3, e225, julio-septiembre 2022. ISSN 2314-2561
Universidad Nacional de La Plata
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
Departamento de Educación Física

Artículos

Educação Física em escolas públicas e privadas na pandemia

Nicole Marceli Nunes Cardoso

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Brasil
Daniel Giordani Vasques

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Brasil
Cita sugerida: Cardoso, N. M. N. y Vasques, D. G. (2022). Educação Física em escolas públicas e privadas na pandemia. Educación Física y Ciencia, 24(3), e225. https://doi.org/10.24215/23142561e225

Resumo: O ano de 2020 foi marcado pela pandemia do COVID-19. Como maneira de prevenir e diminuir a propagação do vírus, o distanciamento social foi empregado e as escolas foram forçadas a fecharem e optarem pelo ensino remoto. O objetivo deste estudo consiste em analisar as diferentes realidades do trabalho docente da Educação Física escolar nas escolas públicas e privadas de Porto Alegre-RS durante a pandemia. Um questionário online foi aplicado com 41 professores do Ensino Fundamental. Nas instituições privadas, as aulas ocorreram em sua maioria em formatos síncronas, com videoaulas e práticas, ressaltando a melhoria de saúde. As instituições públicas demoraram mais para retomar as aulas e optaram por formatos assíncronos e envio de tarefas em formatos e conteúdos diversos. Isso se deu, sobretudo, pela carência de condições para ter acesso a equipamentos tecnológicos e à internet. A liberdade de ação dos sujeitos mostra que as ações docentes são resultantes das suas concepções de mundo, mas também limitadas pela configuração.

Palavras-chave: Educação Física, Pandemia, Escolas públicas, Escolas privadas.

Physical Education in public and private schools in the pandemic

Abstract: The year 2020 was marked by the COVID-19 pandemic. As a way to prevent and control the spread of the virus, social distancing was implemented and schools were forced to close and switch to remote teaching. The objective of this study is to analyze the different realities of Physical Education teaching work in public and private schools in Porto Alegre (RS) during the pandemic. An online questionnaire was completed by 41 elementary school teachers. In private institutions, classes were mainly conducted in synchronous formats, with video lessons and practice, with emphasis on health improvement. Public institutions took longer to resume classes and opted for asynchronous teaching methods and sending assignments in different formats and content. This was mainly due to lack of access to technological equipment and internet service. The subjects’ freedom of action shows that the teaching practices are the result of their own conceptions of the world, but are also limited by other contextual factors.

Keywords: Physical Education, Pandemic, Public schools, Private schools.

Educación Física en escuelas públicas y privadas durante la pandemia

Resumen: El año 2020 estuvo marcado por la pandemia del COVID-19. Para prevenir y frenar la propagación del virus, se empleó el distanciamiento social y las escuelas se vieron obligadas a cerrar y optar por la enseñanza remota. Este estudio tiene como objetivo analizar las diferentes realidades del trabajo docente de Educación Física durante la pandemia en escuelas públicas y privadas de Porto Alegre (RS). Se utilizó un cuestionario en línea con 41 docentes de primaria. En las instituciones privadas, las clases se realizaron principalmente en formatos sincrónicos, con videoclases y prácticas, poniendo énfasis en la mejora de la salud. Las instituciones públicas demoraron más en retomar las clases y optaron por formatos asincrónicos y el envío de tareas con diferentes formatos y contenidos. Esto se debió principalmente a la falta de condiciones en el acceso a equipos tecnológicos e internet. La libertad de acción de los sujetos muestra que las acciones docentes son el resultado de sus concepciones del mundo, pero también están limitadas por la configuración.

Palabras clave: Educación Física, Pandemia, Escuelas públicas, Escuelas privadas.

Introdução

O ano de 2020 foi marcado pela pandemia do COVID-19, a qual ocasionou uma série de calamidades a nível mundial. Como medida de prevenção para diminuir a transmissão do coronavírus foram adotadas algumas providências, entre elas o distanciamento social. Nesse contexto, as instituições educacionais necessitaram suspender as aulas presenciais e dar continuidade à educação pelo ensino remoto. Em Porto Alegre (2020), o fechamento físico das escolas ocorreu em 31 de março, no entanto, o ensino deveria se manter de maneira remota.

Durante este período, o trabalho docente sofreu inúmeras transformações, entre elas o aumento da demanda de trabalho para atender todos alunos e suas famílias e a realização de outras tarefas docentes relacionadas às demandas do ensino remoto. Além da adaptação às novas tecnologias e formatos de ensino, os docentes preocuparam-se em disponibilizar suas aulas para todos os alunos, que, diferentemente da sala de aula no formato presencial – onde todos estão no mesmo lugar e, de certa forma, diminuindo essa desigualdade de acesso à educação –, no modo remoto há a preocupação de envio de tarefas digitais para aqueles que têm acesso, e atividades impressas com retirada na escola para os que não tem, as quais também foram planejadas pelo professor. As tecnologias também foram uma forma de auxiliar para que o novo processo de ensino-aprendizagem ocorresse, contudo o professor precisou ser o mediador neste universo, um facilitador para a aprendizagem em meio a toda essa tecnologia.

A educação brasileira antes da pandemia já não chegava de forma igual para todos. Sabe-se que há na realidade uma enorme desigualdade de acesso à educação e que durante a pandemia essas diferenças se agravaram ainda mais (Fonseca e Machado, 2020). Durante o ano de 2020 algumas tensões foram observadas na educação, entre elas instituições que retomaram imediatamente as aulas remotas, outras que não conseguiram dar continuidade às aulas, e as que mantiveram foi por diferentes metodologias e formatos, o que será analisado ao longo do estudo. Durante este período, algumas escolas tiveram condições de retornar às aulas presenciais com cuidados, enquanto outras não iniciaram nem mesmo aulas remotas. Percebe-se que existem diferentes realidades de educação, e aparentemente estas realidades estavam relacionadas em alguma medida à característica da instituição: serem públicas ou privadas.

Segundo o Artigo 208 da Constituição Brasileira (Brasil, 1988), é dever do Estado garantir uma educação básica gratuita e de qualidade. Assim, a educação pública deve ser prioridade dos órgãos governamentais, porém em grande parte dos casos as instituições não recebem o suporte financeiro adequado (Pinto, 2019). Geralmente, estas instituições, principalmente as municipais, estão localizadas nas periferias das cidades e atendem a um público de baixa renda (May e Paim, 2018). O corpo docente é composto sobretudo de servidores concursados com estabilidade. No que se refere ao trabalho docente, é possível admitir que estes possuem, comparativamente à realidade docente privada, maior liberdade de ação, assim podem expressar e agir de modo mais crítico nas suas práticas docentes. Cabe destacar ainda, conforme Silva e Teixeira (2020), que os professores da escola pública, durante a pandemia, não tiveram um retorno rápido, por parte das secretarias de educação, para a continuidade das aulas remotas de forma síncrona, que mantivesse o vínculo por meio das tecnologias, o que dificultou o processo de ensino.

Já as instituições de ensino privadas foram sancionadas na Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996) e são administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. Estas costumam se localizar em áreas mais centrais ou específicas da cidade (Pizzolato, Barros, Barcelos e Canen, 2004) e atendem majoritariamente a um público de renda mais alta (May e Paim, 2018). Em comparação, os professores destas instituições possuem menor liberdade de ação, possivelmente por terem maiores laços de interdependência com outros atores da escola, como direção, alunos e famílias; e pela instabilidade no cargo. Silva e Teixeira (2020) afirmam que, durante a pandemia, os professores das escolas privadas deram continuidade aos estudos por meio das tecnologias, mantendo vínculos entre os estudantes e as escolas.

A Educação Física escolar, esse componente curricular inserido na área das Linguagens que “tematiza as práticas corporais em suas diversas formas de codificação e significação social” (Brasil, 2018, p.213), também sofreu inúmeras modificações no ensino remoto. A área tem como característica do seu objeto de estudo a ‘prática’, o ‘saber fazer’, o ‘procedimental’. No entanto, observou-se ao longo deste novo modo ensino deslocamentos das estratégias didáticas de “saberes conceituais para saberes corporais” (Machado, Fonseca, Medeiros e Fernandes, 2020, p.7), retomando então a discussão do campo sobre as dimensões do conteúdo.

As tensões do campo estiveram em jogo durante o ensino pandêmico, entre elas a ‘relação teoria-prática’. A Educação Física já foi idealizada por instruções militaristas, higienistas e disciplinares, no entanto, mais recentemente ela se aproxima, segundo Fensterseifer e González (2007), mais de uma disciplina escolar reflexiva e menos um “exercitar-se para”. Ainda assim, as diferenças de liberdade de atuação dos professores em nas diferentes instituições de ensino pode conduzir as práticas pedagógicas para lugares distintos no que se refere às ‘práticas’ corporais.

Outra questão fortemente abordada na área é a sua frequente associação com a saúde. De maneira geral, muitos professores descrevem em suas estratégias didáticas uma ideia de manter a atividade física do aluno em dia, em uma noção de prevenção de doenças. No entanto, será que essas estratégias foram as mesmas para docentes de instituições públicas e privadas? Cabe ressaltar que, de acordo com Devide (2003, p.141), esta noção de saúde é “estreita”, pois saúde está associada a questões multifatoriais relacionadas à desigualdade socioeconômica e às condições de acesso, que foram agravadas pela pandemia nas diferentes realidades da educação. Por isso, será que as instituições possuem esta preocupação com a saúde?

Dentre as possibilidades e dificuldades durante a pandemia, o que mais se destacou foram as tecnologias, que serviram como facilitador para o novo modo de ensino e trouxeram dificuldades devido às condições precárias de acesso. Sabe-se que essas condições se diferenciaram quando se comparam as escolas públicas e as privadas. Enquanto algumas escolas conseguiram seguir com as aulas no formato remoto, outras tentaram manter algum contato com os alunos e famílias. Assim, nas escolas públicas alguns docentes relataram ter optado por estratégias com conteúdos mais fáceis de serem realizados em casa, de forma individual, sem muito material e espaço adequado. De acordo, Coelho, Xavier e Marques (2020, p. 10) evidenciam a “exclusão do trabalho corporal” como consequência da falta de material e espaço adequado.

Com isso, compreende-se a importância de analisar essas diferenças nas práticas pedagógicas da Educação Física durante o ensino remoto. Sendo assim, questiona-se: Como aconteceram as aulas de Educação Física nas escolas públicas e privadas? Por que assumiram tais formatos? Desta forma, o objetivo do presente estudo é analisar as realidades de trabalho docente da Educação Física nas escolas públicas e privadas de Porto Alegre durante a pandemia de COVID-19.

Metodologia

O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo descritiva-exploratória, com intuito de analisar duas situações educacionais de realidades distintas. Para isto, foi aplicado um questionário com professores de Educação Física. Para a seleção dos sujeitos, os critérios de inclusão foram: a) professores de Educação Física que estivessem atuando de forma remota durante a pandemia de 2020; b) que atuassem no ensino fundamental; e c) que lecionassem em escolas, particulares ou públicas, da cidade de Porto Alegre do Rio Grande do Sul.

Os sujeitos foram convidados de forma intencional, a partir: 1) da proximidade da pesquisadora; 2) do envio de e-mails para todas as escolas estaduais, municipais e privadas do município cujos endereços virtuais estavam disponíveis online junto aos sindicatos e coordenadorias; e 3) da divulgação em grupos de professores de Educação Física do Facebook. A partir de tais estratégias, obteve-se um total de 41 respondentes, sendo que 17 atuavam na rede pública municipal, 15 na estadual, 3 na federal e 11 na rede particular; ressalta-se que alguns professores atuavam em mais de uma instituição.

Para a produção dos dados, foi realizada a aplicação de um questionário eletrônico do Google Forms, entre os meses de novembro e dezembro de 2020. O formulário foi composto de 31 questões, sendo elas abertas e fechadas, com opções de múltipla escolha, seguida de uma justificativa de texto longo ou curto. Este foi dividido entre quatro seções, contendo: i) descrições dos participantes, das normas e orientações da escola; ii) as estratégias didáticas e tecnológicas adotadas pelos professores; iii) as intencionalidades pedagógicas docentes; e iv) as condições de acesso de alunos e professores.

A análise dos dados foi realizada de forma descritiva, de acordo com a divisão do questionário, conforme as quatro categorias analíticas apresentadas anteriormente. A análise de conteúdo de Bardin (2016) foi empregada em cada pergunta separadamente, relacionando e elencando com perguntas semelhantes ou com as próximas perguntas complementares. Nesse processo foram construídas respostas às perguntas norteadoras da pesquisa, bem como a construção de categorias empírico-analíticas.

Resultados e discussão

Normas e orientações da escola

Foi unânime nas respostas dos professores, tanto da rede pública quanto da rede privada, a existência de recomendações institucionais para a organização das aulas, tempo adequado, e para o uso de ferramentas/plataformas. Ao avaliar as aulas, apenas 10 docentes afirmaram que as aulas funcionaram “de forma plena”.

Dos 10 docentes que afirmaram que as aulas aconteceram “de forma plena”, seis destes eram de escolas privadas. As sugestões das instituições embasaram-se na realização das aulas de forma online; para o uso de determinada plataforma; e sobre cuidados de segurança. Enquanto isso, as cinco respostas divergentes ressaltaram que “a maioria dos alunos não participava”. Com isso, observou-se que a maioria das escolas particulares se preocupou com aqueles alunos que não conseguiam participar das aulas, seja com empréstimo de equipamentos ou com material físico retirado na escola. Em concordância, Rossoni e Silva (2021, p. 8) também afirmam a ideia de “materiais alternativos para os alunos que estão em casa” e que todos esses alunos têm acesso a esses materiais.

Já para as escolas públicas, apenas quatro dos 35 participantes consideraram que as aulas aconteceram “de forma plena”. Ou seja, a maioria dos professores das escolas públicas não conseguiram dar continuidade nas aulas durante o Ensino Remoto. As maiores dificuldades foram em relação à falta de equipamentos tecnológicos para acompanhar as aulas e à falta de recurso financeiro das instituições escolares. O estudo de Silva, Pereira, Oliveira, Surdi e Araújo (2020) também reforça a ideia da desigualdade enfrentada pelas escolas públicas frente ao uso das tecnologias para o desenvolvimento do ensino remoto.

As preocupações de acesso foram, assim, constantes nos dois espaços, porém em graus bastante diferentes. Enquanto na esfera privada a preocupação era com aulas online, uso de plataformas e segurança, na esfera pública a preocupação era com falta de equipamentos e recursos.

Estratégias didáticas e tecnológicas

Nesta seção, são discutidas as estratégias docentes para as aulas. De maneira geral, os docentes se preocuparam com estratégias para conseguir uma maior adesão dos alunos, com diferentes formatos e métodos. Isso foi apontado por Machado et al. (2020) quando se referem a um “deslocamento de saberes conceituais para saberes corporais”, uma mudança de estratégia para alcançar o maior número de alunos.

Em relação às escolas privadas, foi possível observar uma preocupação, desde o início, em proporcionar aulas de maneira síncrona para os alunos, com a inclusão de vídeos gravados e com atividades práticas, além de utilizarem mais ferramentas voltadas para este formato, como o Google Meet, o Zoom e o Microsoft Teams. A tabela 1 apresenta as respostas dos 11 professores das escolas privadas em relação às estratégias adotadas:

Tabela 1
Estratégias didáticas dos professores de escolas privadas
Estratégias didáticas dos professores de escolas privadas.
Fonte: Os autores (2022).

Algumas respostas docentes mostram relação com um conceito tradicional de saúde como acúmulo de atividade física. A adaptação dos espaços e a discussão sobre aulas ‘teóricas’ e ‘práticas’ também é marcada nas respostas, assim como o é a preocupação em atrair os estudantes com aulas “dinâmicas”. Tais ideias são características de espaços nos quais as aulas estão acontecendo de modo síncrono ou, no mínimo, com o envio de materiais com vídeo. Essa parece ter sido, desde o início do isolamento social, a realidade das instituições privadas de ensino. Nessa perspectiva, cabe destacar a relação de algumas preocupações docentes com a ‘prática’ tendo em vista a saúde e a atividade física, como, por exemplo, nas propostas de “colocar os alunos na ativa” e de trazer “convidados especialistas em nutrição, médicos”.

Segundo Rossoni e Silva (2021, p. 8) as plataformas digitais mais utilizadas por professores da rede privada foram o “Google Meet, Zoom e link de atividades”. Para Zanardi (2021) o momento em que a educação brasileira se encontra em frente à desigualdade de oferta das aulas remotas entre escolas públicas e privadas traz a noção do grande desafio que se está enfrentando e do aumento da desigualdade de educação.

No que se refere ao formato das aulas adotado pelos professores das escolas públicas, ressalta-se que dos 31 entrevistados apenas 10 disseram ter realizado as aulas de maneira síncrona, de modo online. As ferramentas mais utilizadas foram documentos em formato doc ou pdf, aplicativo de mensagens como o Whatsapp e e-mail. De modo geral, as escolas públicas realizaram as aulas de modo diferente das escolas privadas, com menos contato com os alunos e sem diálogo de forma online. Tais dados corroboram com Pedro e Dietz (2020), que destacaram nessa realidade a realização de atividades de Educação Física através de textos. Na tabela 2 encontram-se as respostas dos docentes de escola pública referente às suas estratégias:

Tabela 2
Estratégias didáticas dos professores de escolas públicas
Estratégias didáticas dos professores de escolas públicas.
Fonte: Os autores (2022).

Os relatos dos professores das escolas públicas versaram, por sua vez, sobre a relação ‘teoria-prática’ e sobre os conteúdos, diversos, por sinal. Aqui, no entanto, veem-se as estratégias docentes para aulas em outros formatos que não síncronos/online, como vídeos, powerpoint, musicais, texto e perguntas, imagens/fotos, entre outras. Possivelmente, as dificuldades para a implementação de aulas síncronas levaram a uma diversidade de estratégias na rede pública, por vezes, direcionada pela escola e por vezes como ação docente para atingir o seu objetivo.

Observou-se que professores de ambas as instituições destacaram uma forte associação da ‘prática’ da Educação Física escolar com a saúde e a atividade física dos alunos. Essas respostas indicam uma crença na Educação Física como ‘melhoria da saúde’, ancorada na ausência de doenças. Devide (2003) critica tal noção ao associar a saúde à desigualdade socioeconômica e às condições de acesso. Os relatos das escolas privadas se preocuparam mais com essa ‘saúde’ dos alunos, pois nos argumentos procuraram realizar mais aulas ‘práticas’ para “manter um ritmo de exercício físico”, apesar de isso aparecer também em alguma medida nos relatos da escola pública, como, por exemplo, na preocupação para que os estudantes “não entrassem em um estágio de sedentarismo”.

Intencionalidades pedagógicas

Nesta categoria, são discutidas as intencionalidades pedagógicas dos docentes com seus conteúdos e estratégias. Em um contexto amplo, os conteúdos mais trabalhados foram: Ginástica (n=39 docentes, sendo 11 das escolas privadas e 28 das públicas) e Jogos e Brincadeiras (n=39, sendo 11 das escolas privadas e 28 das públicas), enquanto que, como tema transversal, destacou-se a Saúde (n=38, sendo 10 das escolas privadas e 28 das públicas). As justificativas foram, sobretudo, “trabalhar na prática” e considerar tal conteúdo “mais acessível” aos alunos.

Os docentes das escolas privadas tinham como objetivo a “aprendizagem de conceitos” e a "vivência prática”. As justificativas destes professores foram de estar seguindo algum documento oficial, seja ele a BNCC ou algum projeto/conteúdo já previsto pela escola. Destaca-se novamente a menor autonomia nesses espaços, pois suas ações se tornam dependentes da direção e das famílias. Logo, seguir recomendações e diretrizes na escolha de conteúdos é uma estratégia de argumentação/sustentação.

Ao questionar os aprendizados dos alunos de escola privada, oito professores responderam que os alunos aprenderam “em parte”, os outros três afirmaram que “sim”, aprenderam. Sobre os processos de avaliação, os principais critérios utilizados foram: estar presente na aula síncrona (n=7); dar retorno das atividades (n=6); e conseguir realizar o que foi pedido (n=5). Com isso, é possível ressaltar que as escolas privadas conseguiram dar continuidade às aulas de forma remota de uma maneira mais ativa, devido também aos recursos que estas instituições possuem, dando suporte aos alunos. Tais avaliações se fazem coerentes quando há participação dos alunos e retorno das atividades. Em contrapartida, o estudo de Rossoni e Silva (2021) em escolas particulares ressalta que nem todos os alunos participavam das aulas e que poucos abriam as câmeras para participar ativamente. Ou seja, que mesmo os alunos que possuem mais condições acabavam não participando das aulas remotas, por algum outro motivo que não era o acesso a tecnologias.

Para os professores de escolas públicas os objetivos eram de modo geral reconhecer “elementos da cultura corporal” e “socializar com seus familiares”. As justificativas para estes objetivos são diversas, entre elas destaca-se uma grande preocupação com a participação de todos os alunos, assim como foram escolhidos conteúdos que se adequassem ao momento de pandemia e auxiliasse os alunos nesse período. Em concordância, o estudo de Silva et al. (2020) relata a preocupação dos professores das escolas públicas em realizar atividades com brincadeiras que os alunos possam realizar em casa com os familiares, podendo realizar alguma troca afetiva, substituindo, de certa forma, aquela que tinha presente no cotidiano das aulas presenciais.

Sobre os aprendizados dos alunos de escola pública, 27 professores responderam que os alunos aprenderam “em parte” e apenas três disseram que os alunos não aprenderam nada. Em relação ao processo de avaliação, apenas dois professores disseram não ter realizado nenhuma avaliação. Os demais destacaram como principais critérios: dar retorno das atividades (n=29); conseguir realizar o que foi pedido (n=15); e demonstração de interesse nas atividades (n=14). Os professores já salientaram que os alunos possuíam dificuldades de acesso a equipamentos e que poucos participavam das aulas, e por isso tais critérios avaliativos parecem pouco coerentes com a realidade de dificuldade de acesso da maioria dos estudantes. Porém, como avaliar aqueles que não aparecem? Em contraste a esses dados, Fonseca e Machado (2020) identificaram, em escolas do Rio Grande do Sul, que o processo de avaliação não acontecia porque os professores não eram orientados ou autorizados.

Condições de acesso

Nesta parte do estudo, podemos observar as maiores diferenças entre as escolas públicas e privadas durante a pandemia, pois as condições de acesso são a parte fundamental para o acompanhamento das aulas de maneira remota. Com isso, de forma generalizada, os professores destacaram que a participação dos alunos nas aulas era “um desafio”.

Sobre as condições de acesso das escolas privadas, destaca-se que a maioria ou a metade dos alunos conseguiam participar das aulas. Apesar de o senso comum imaginar que todos os alunos possuem condições tecnológicas para acessar as aulas, cinco professores disseram “não”, que nem todos os alunos possuem condições de acesso. Costa e Conceição (2021) relatam, nesse sentido, a ausência de acesso às ferramentas digitais para alunos de escolas privadas de baixa renda. Em relação ao retorno das atividades solicitadas, sete professores disseram ser um retorno “bom - a maioria retornava”, e apenas dois disseram ser “ruim - apenas alguns retornavam”. Pode-se analisar então que a maioria dos professores avaliava os alunos por participação e retorno das atividades, e que estes apresentavam um bom retorno e uma boa participação em aula. Devido a isso, é importante ressaltar que as escolas privadas conseguiram, de alguma forma, dar certa continuidade às aulas durante o ensino remoto.

Muitas dificuldades foram enfrentadas pelos professores das escolas privadas: falta de interação com os alunos, adaptar as atividades, o uso da tecnologia, e a falta de “abertura de câmeras" dos alunos. “A maior dificuldade foi conseguir que os alunos liguem as câmeras para ter uma orientação adequada na realização dos exercícios, pois muitos deles têm celulares excelentes, mas alegam ter vergonha de ligar a câmera”, mesma dificuldade observada por Rossoni e Silva (2021).

Em relação às condições de acessos dos alunos das escolas públicas, verifica-se que a maioria dos professores (n=21) respondeu que poucos “alunos participam das aulas”, e apenas sete disseram que “a maioria participava”. Pode-se analisar que houve pouco envolvimento dos alunos com as aulas, quando 25 professores relataram que os alunos “não possuem condições de acesso para o acompanhamento das aulas”, devido à falta de equipamento e acesso à internet. Sobre o retorno das atividades, 17 professores responderam ser um retorno “ruim - somente alguns retornavam”; 10 disseram ser “razoável - metade retornava” e apenas sete “bom - a maioria retornava”. As respostas mostram que os docentes estavam cientes das dificuldades dos alunos e ressaltam a falta, por vezes, de condições mínimas de acesso. Tal carência, um reflexo das desigualdades sociais – acentuadas na pandemia –, constitui em parte o ensino remoto nesse período. Coelho et al. (2020) também refletem sobre a influência da desigualdade social na pandemia na participação dos alunos. A ausência de políticas públicas destinadas ao acesso à educação em 2020 certamente parece ter agravado esse problema na realidade estudada.

As dificuldades encontradas pelos professores das escolas públicas baseiam-se em: limitação com equipamentos tecnológicos e falta de capacitação, retorno dos alunos e envolvimento com as aulas, e não ter contato com os alunos. Um pouco diferente da realidade das escolas privadas, as escolas públicas se preocuparam muito mais com o acesso aos equipamentos e para que alcançasse o maior número de alunos possíveis. Concordando com Skowronski (2021), os motivos para a não participação dos alunos são diversos, devido à falta de motivação, necessidade de trabalhar para auxiliar em casa, sistematização de tempo e espaço, bloqueio de internet, precariedade em celulares/computadores, entre outros.

Conclusões

As aulas de Educação Física aconteceram de formas diferentes nas escolas públicas e privadas durante o ensino remoto. Nas instituições privadas, as aulas de Educação Física ocorreram em sua grande maioria em formatos síncronas, com videoaulas e aulas preferencialmente práticas, ressaltando a importância da atividade física para uma melhoria de saúde. Tais aulas aconteceram sobretudo com recursos tecnológicos mais avançados para manter os formatos escolhidos e sugeridos pelas próprias instituições.

As instituições públicas, por sua vez, demoraram um pouco mais para retomar as aulas na pandemia e, ao retornarem, optaram por aulas em formatos assíncronos, com envio de tarefas e estratégias pedagógicas em formatos e com conteúdos diversos. Isso se deu, sobretudo, pela carência de condições para ter acesso a equipamentos tecnológicos e à internet.

No tocante aos conteúdos, observou-se estratégias docentes diferentes entre as redes de ensino. De modo geral, enquanto os professores das escolas privadas visavam à aprendizagem e vivência dos conteúdos previstos anteriormente e mais citados – Jogos e Ginásticas –, os professores das escolas públicas utilizaram-se dos conteúdos para reconhecer aspectos da cultura corporal, por vezes em interação com a família, haja visto que tinham a intenção de acolher o maior número de alunos possíveis, para que todos participassem.

Para o acompanhamento das aulas de forma remota exigiu-se equipamentos e conhecimentos tecnológicos, porém isso não aconteceu ou ocorreu com atraso, sobretudo nas instituições públicas. A desigualdade social já existente se agravou ainda mais durante a pandemia, impedindo que as aulas chegassem em todos os alunos.

Os achados deste estudo apresentaram as problemáticas encontradas em relação a utilização do ensino remoto nas aulas de Educação Física em tempos pandêmicos, a desigualdade de acesso à educação oferecida pelas escolas públicas e privadas, bem como demanda condições mínimas de subsistência que os dados da pesquisa mostram não estarem presentes em todas as realidades. Urge na educação, e na sociedade, a necessidade de políticas públicas que deem condições de dignidade humana aos brasileiros.

As tensões históricas do campo sobre saúde e sobre conteúdos da Educação Física, sobre ‘teoria’ e ‘prática’, e sobre acesso e inclusão foram objeto de debate no ensino pandêmico. Tais elementos estiveram em disputa e mostraram as identidades da Educação Física que permanecem e sobrevivem a momentos de crise. A maturidade da discussão acadêmica sobre a intervenção pedagógica em Educação Física no seio escolar mostrou elementos críticos de reconfiguração da área. Resta-nos refletir que Educação Física virá após esses tempos.

Ao fim, a liberdade de ação dos sujeitos dentro da configuração mostra que as ações docentes são resultantes das suas concepções de mundo, mas que também são derivadas e limitadas pela configuração na qual os sujeitos estão inseridos. Assim, seguir documentos, normas, regimentos, orientações limita as possibilidades de ação docente na escola. Que mais liberdade, autonomia, criatividade, inventividade, imaginação, sejam possíveis. Melhor ainda se pudermos, enquanto sociedade, aliar tais elementos a efetivas condições de acesso, de permanência e de qualidade de trabalho docente.

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Recepción: 21 Marzo 2022

Aprobación: 05 Julio 2022

Publicación: 01 Agosto 2022

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