Educación Física y Ciencia, vol. 24, nº 1, e209, enero-marzo 2022. ISSN 2314-2561
Universidad Nacional de La Plata
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
Departamento de Educación Física

Artículos

Psicomotricidade Relacional: contributos na Formação de Professores(as) de Educação Física

Camila Rubira Silva

Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Brasil
Ângela Adriane Schmidt Bersch

Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Brasil
Cita sugerida: Silva, C. R. y Bersch, A. A. S. (2022). Psicomotricidade Relacional: contributos na Formação de Professores(as) de Educação Física. Educación Física y Ciencia, 24(1), e209. https://doi.org/10.24215/23142561e209

Resumo: Neste artigo investigamos as experiências vivenciadas pela primeira autora em uma ação pedagógica da disciplina Psicomotricidade Relacional, ofertada para um curso de Licenciatura em Educação Física de uma Universidade Federal do extremo Sul do Brasil, visando compreender as implicações dessas experiências na sua formação docente. Para tanto, analisamos as notas narrativas escritas em diário de campo durante a referida disciplina com subsídio da metodologia de Pesquisa Narrativa e aporte teórico de Lapierre (1997). Na análise emergiram três categorias: Medo e insegurança – em planejar e aplicar uma ação de Psicomotricidade Relacional; Anseio e cuidado – em promover uma pedagogia centrada no(a) estudante e na escolha de materiais que despertassem a atenção e interação entre os(as) participantes; Interesse e satisfação – em vivenciar e promover diferentes experiências de abordagens pedagógicas de ensino de Educação Física, bem como em refletir as próprias experiências formativas. Concluímos, que ao experienciar sessões de Psicomotricidade Relacional o(a) professor(a) poderá construir saberes que o(a) possibilite promover um ensino de Educação Física tendo como pressupostos a escuta, o diálogo, a criatividade e a qualidade das relações sociais que serão estabelecidas entre os sujeitos.

Palavras-chave: Formação de Professores, Educação Física Escolar, Psicomotricidade Relacional.

Relational Psychomotricity: contributions in Physical Education Teacher Training

Abstract: In this paper we investigate the experiences lived by the first author in a pedagogical action of the Relational Psychomotricity discipline, offered for a Physical Education Degree course at a Federal University in the extreme South of Brazil, in order to understand the implications of these experiences in their teacher formation. To do this, we analyzed the narrative notes written in a field journal during the referred discipline, with support of the Narrative Investigation methodology and theoretical contribution from Lapierre (1997). In the analysis, three categories emerged: Fear and insecurity – planning and applying a Relational Psychomotricity action; Desire and care – in promoting pedagogy centered on the student and in the choice of materials that arouse attention and interaction among the participants; Interest and satisfaction – for experimenting and promoting different experiences of pedagogical approaches for the Physical Education teacher, as well as reflecting on their own training experiences. We conclude that, when experiencing Relational Psychomotricity sessions, the teacher will be able to build knowledge that allows him/her to promote a teaching of Physical Education based on listening, dialogue, creativity and the quality of social relationships that will be established between the subjects

Keywords: Teacher Formation, School Physical Education, Relational Psychomotricity.

Psicomotricidad relacional: contribuciones en la formación del profesorado de Educación Física

Resumen: En este artículo investigamos las experiencias vividas por el primer autor en una acción pedagógica de la disciplina Psicomotricidad relacional, ofrecida para un curso de Licenciatura en Educación Física en una Universidad Federal en el extremo sur de Brasil, con el fin de comprender las implicaciones de estas experiencias en su formación docente. Analizamos las notas narrativas redactadas en un diario de campo durante la referida disciplina con subsidio de la metodología de Investigación Narrativa y aporte teórico de Lapierre (1997). En el análisis surgieron tres categorías: Miedo e inseguridad - en la planificación y aplicación de una acción de Psicomotricidad Relacional; Anhelo y cuidado: promover una pedagogía centrada en el alumno y la elección de materiales que despierten la atención y la interacción entre los participantes; Interés y satisfacción - por experimentar y promover diferentes experiencias de enfoques pedagógicos para la enseñanza de la Educación Física, así como reflejar sus propias experiencias de formación. Concluimos que, al vivenciar las sesiones de Psicomotricidad Relacional, el docente puede construir conocimientos que le permitan promover una enseñanza de la Educación Física basada en la escucha, el diálogo, la creatividad y la calidad de las relaciones sociales que se establecerán entre los sujetos.

Palabras clave: Formación de Profesores, Educación Física Escolar, Psicomotricidad Relacional.


Historicamente os corpos vêm sendo disciplinados nas diversas instituições sociais, como uma forma de controle (Soares, 2005). Na escola ainda percebemos resquícios de uma abordagem tradicional de ensino com enfoque no(a) professor(a) e em práticas diretivas que buscam adequar os corpos e os comportamentos dos(as) estudantes a tempos e espaços específicos. O controle exercido nesses espaços atua como uma dinâmica relacional a partir da qual “o outro a e outra surgem negados em suas capacidades e talentos, estreitando a visão, a inteligência e a criatividade, gerando uma dependência na qual não são possíveis a autonomia e o respeito por si mesmo” (Maturana & Dávila, 2006, p. 34).

A vista disso, a liberdade dos(as) estudantes vivenciarem a sua corporeidade e seu o corpo em movimento acaba sendo contido e, quando entendida como indisciplinada, resulta na punição por meio da imobilização, quase sempre associada a possibilidade de ficarem “[...] sem o recreio ou até mesmo sem a aula de Educação Física, que costuma ser um dos únicos momentos em que os alunos saem da sala de aula emparedada e ficam mais ao ar livre” (Alves et al., 2019, s./p.). Além disso, de forma mais latente percebemos a influência do dualismo cartesiano corpo/mente, presente principalmente na separação de uma Educação Física e uma educação intelectual, privilegiando as dimensões motoras e cognitivas dos(as) estudantes e desconsiderando as afetivas, emocionais e sociais (Lapierre, 2008). Segundo Lapierre (2008) nesta tradição dualista

[...] o aluno ideal segue sendo aquele que tem os olhos para ver o professor, os ouvidos para escutar o que o professor diz, uma boca para responder e uma mão, de preferência direita, para escrever. Todo o resto é inútil e em particular esse corpo que tem uma fastidiosa tendência a agitar-se e criar desordem. A esse corpo se envia o professor de Educação Física para que se ensine a disciplinar-se. (p. 19)

Nesse sentido, parece que as aulas de Educação Física se constituem como um espaço privilegiado para que os(as) estudantes externalizem a agitação entendida desnecessária e até mesmo prejudicial à sala de aula, vivenciando o seu corpo em movimento. Apesar disso, o sistema escolar e as práticas planejadas pelos(as) professores(as), por vezes, podem acabar limitando e/ou impedindo o acontecimento de experiências em que os(as) estudantes de fato possam vivenciar o seu corpo de forma livre e espontânea. A ênfase em uma forma mais tradicional de ensino, centrada na orientação do(a) professor(a) com práticas diretivas e pouco significativas para os(as) estudantes parece em nada contribuir para formação de sujeitos que vivenciam a sua corporeidade.

Nos cursos de formação de professores(as) de Educação Física, não muito diferente do que na Educação Básica, também reconhecemos resquícios do desenvolvimento de práticas de ensino diretivas com abordagem em uma pedagogia tradicional que insiste menosprezar os aspectos afetivos, emocionais e sociais dos sujeitos. Do mesmo modo, perpetua a promoção de uma formação com caráter prático e saberes disciplinares, com raízes em um passado no qual o rigor científico e técnico se sobressaia as questões existenciais da humanidade (Lapierre, 1993, tradução nossa). Nesses cursos os(as) acadêmicos passam um certo número de anos a assistir aulas baseadas em disciplinas e constituídas de conhecimentos propositais os quais serão aplicados nos estágios, consequentemente, esta formação para o magistério tem um impacto pequeno sobre o que pensam, creem e sentem os(as) acadêmicos(as) (Tardif, 2019).

Na constituição de professores(as) de Educação Física esta formação pode ter significativas contribuições no modo como esses sujeitos compreendem os processos de ensino e de aprendizagem, bem como na forma como lidam com os(as) estudantes. Além disso, a falta da valorização do aspecto afetivo na formação dos(das) professores(as) podem levar os(as) mesmos(as) a suprimirem este aspecto do seu fazer docente, posto que “se não aprenderam, possivelmente não ensinarão!” (Bersch & Juliano, 2015, p. 131).

De acordo com Tardif (2019) as experiências formativas que os(as) acadêmicos(as) vivenciam nos cursos de Formação Inicial de professores(as) podem contribuir para a modelagem de sua identidade, bem como para a mobilização e produção de saberes que serão utilizados na futura profissão. Assim, compreendemos que as experiências vivenciadas pelos(as) acadêmicos(as) dos cursos de Licenciatura em Educação Física, poderão de alguma forma influenciar os futuros(as) professores(as) no planejamento das práticas pedagógicas que irão proporcionar nas suas aulas, assim como no modo como irão se relacionar com os(as) estudantes.

Corroborando, Maturana e Varela (2005) acrescentam que a formação docente acontece como um processo contínuo que se estende por toda a vida dos sujeitos, por meio de experiências compreendidas no fluir do viver. Para os autores, é nesse processo de viver que emerge o fenômeno do conhecer, a partir de experiências, com nós mesmos, com os outros organismos e com o meio social. Assim, entendemos que oportunizar aos acadêmicos(as) dos cursos de formação de professores(as) de Educação Física experiências de abordagens pedagógicas diversificadas, poderá contribuir para que vivenciem e promovam a construção de saberes, por meio de um processo formativo que seja mais significativo para si e para os(as) estudantes com quem irão conviver.

Nessa formação, defendemos que sejam promovidas vivências de Psicomotricidade Relacional, uma vez que essa intervenção pedagógica poderá ampliar as concepções de Educação Física dos(as) futuros professores(as), visto que “não tem como única finalidade o desenvolvimento físico – fisiológico – neurológico – muscular – cardiovascular, etc., mas tem também objetivos de natureza psicológica” (Lapierre, 1993, p. 291). Esta intervenção pedagógica busca romper com uma visão fragmentada de Educação Física, na qual a dimensão física e biológica fora privilegiada em detrimento da compreensão do sujeito na sua corporeidade.

Criada na década de 70 pelo autor André Lapierre, professor de Educação Física com ampla concentração em estudos no campo do comportamento humano, a Psicomotricidade Relacional visa por meio da totalidade do sujeito – incluindo as dimensões corporal, intelectual, afetiva e social – compreender a comunicação corporal e as relações que se estabelecem entre os sujeitos. Nas intervenções e interações denominadas de jogo (brincar) simbólico espontâneo, participam um grupo de sujeitos, normalmente com idades próximas.

No jogou ou brincadeira simbólica espontânea, coloca-se a disposição dos(as) participantes alguns objetos (materiais), de modo que os sujeitos possam ao entrar no jogo, vivenciar o seu corpo de forma livre e espontânea. A utilização simbólica destes objetos serve tanto para mediar as relações entre os(as) participantes, quanto para expressar e comunicar o estado em que os seus corpos se encontram no momento da intervenção. Para o autor, toda a atividade espontânea desenvolvida pelos sujeitos está carregada de sentido, pois, é através dos gestos, das atitudes, dos atos que a criança ou o adulto revela sua personalidade, desejos, carências, conflitos e fantasmas inconscientes (Lapierre, 1993, tradução nossa).

Lapierre (1993, tradução nossa) esclarece que o foco da Psicomotricidade Relacional está na sua vivência espontânea e emocional dos sujeitos. Mediante o brincar livre e espontâneo os(as) participantes podem manifestar “diversos sentimentos e emoções por meio da ludicidade e do brincar: a agressividade, a inventividade, a criatividade, a afetividade e outros aspectos inerentes ao desenvolvimento psicomotor” (Bersch, Yunes & Molon, 2020, p. 319).

Corroborando Maturana e Verden-Zõller (2004) discorrem sobre a importância do brincar para aquisição da consciência social, da autoaceitação e do autorrespeito pelos sujeitos, entendendo a brincadeira como qualquer atividade vivida no presente de sua realização e desempenhada de modo emocional, sem nenhum propósito que seja exterior e nem considerações que neguem sua legitimidade. Para os autores é por meio das interações que estabelecem no brincar que a criança, jovem ou adulto se encontra na aceitação de si mesmo, ao aceitar a sua própria corporeidade e a corporeidade do outro com quem interage.

Dessa forma, na escolha dos objetos não há um conjunto de critérios predefinidos a serem considerados, podem ser utilizados materiais com diferentes texturas, formas, cores, tamanhos e funções, tais como aros, cordas, balões, papelão, tecidos, entre outros. Todavia, o autor chama a atenção para que sejam disponibilizados objetos não estruturados1 a fim de evitar estereótipos, como a reprodução de gestos padronizados, por exemplo, dos esportes, assim como, objetos com dimensões suficientemente grande para que os sujeitos possam vivenciar com todo o seu corpo, e não apenas com os membros superiores ou inferiores.

Lapierre e Aucouturier (1985, tradução nossa) também alertam sobre a necessidade do jogo simbólico ser proporcionado por meio de uma relação de mediação, em que o(a) mediador(a) interfira o mínimo possível no jogo. Assim, na medida em que os(as) participantes vão tomando liberdade e assumindo a autonomia o(a) mediador vai se retirando paulatinamente. Contudo, há momentos em que a intervenção do(a) professor(a) possa ser necessária, principalmente, quando os(as) estudantes são tomados(as) pela insegurança proporcionada pela liberdade, desencadeando uma espécie de bloqueio das possibilidades de investimento simbólico do corpo, e/ou quando os(as) estudantes estão tão inibidos(as), a ponto de induzir o restante do grupo a um pessimismo e uma inatividade. Nesses casos, o(a) professor(a) poderá intervir de forma diretiva, seja mudando os objetos, dividindo os grupos, ou propondo alguns acordos tão amplos e abertos quanto seja possível (Lapierre & Aucouturier, 1985, tradução nossa).

O campo de aplicação desta intervenção pedagógica tem se demonstrado vasto, podendo ser desenvolvido tanto no âmbito escolar, quanto clínico e empresarial, com diferentes públicos desde criança à idosos. No âmbito escolar, seu principal objetivo consiste em promover o desenvolvimento integral dos sujeitos, envolvendo os aspectos: cognitivo, social, psicoafetivo e psicomotor, enfatizando “[...] a comunicação humana e comportamentos afetivo-emocionais indispensáveis à conquista do conhecimento e ao bem-estar pessoal e social” (Vieira, Batista & Lapierre, 2005, p. 66).

Neste sentido, a experiência de Psicomotricidade Relacional na formação de professores(as) de Educação Física, principalmente, por meio da oferta de disciplinas obrigatórias no currículo dos cursos de licenciatura tem sido defendida como um recurso primordial à formação de professores(as). Para Bersch e Juliano (2015) esta formação poderá proporcionar potentes mudanças e efetivas transformações no desenvolvimento afetivo e relacional de professores(as) e estudantes, assim como, maximizar os processos de ensino e aprendizagem, visto que a Psicomotricidade Relacional busca potencializar o desenvolvimento e a aprendizagem da pessoa, valorizando tanto o corpo quanto as emoções na formação dos sujeitos. Além disso, por meio da sua organização com estruturas de rotina, a Psicomotricidade Relacional pode ajudar “[...] o professor na elaboração das atividades e nas estratégias, com o auxílio de diferentes materiais que favorecem a evolução no comportamento e no desenvolvimento psicomotor e biopsicossocial dos participantes” (Bersch & Piske, 2020, p. 14-15). Para Maturana (2002) esse desenvolvimento – físico, comportamental, psíquico, social e espiritual – tem como condição essencial a necessidade da aceitação do sujeito na convivência, condição essa vivenciada através do brincar espontâneo.

Dessa forma, a formação de professores(as) de Educação Física por meio da intervenção pedagógica da Psicomotricidade Relacional, a partir da própria vivência corporal pelos(as) acadêmicos(as), poderá contribuir para que venham a ampliar suas concepções de Educação Física, assim como, modificar suas práticas de ensino, de modo a vislumbrarem no brincar um potencial pedagógico para o desenvolvimento da sua autoaceitação e da aceitação da corporeidade de outros sujeitos. Além disso, poderá favorecer a promoção de ambientes de aprendizagem em que sejam valorizados os aspectos afetivos e emocionais dos(as) estudantes nas relações estabelecidas.

Assim, compreendemos que para entender a escola em suas nuances é necessário lançar um olhar reflexivo e questionador sobre os cursos de formação de professores(as). De modo análogo, para entender as práticas que têm sido mantidas e/ou rompidas nas aulas de Educação Física no âmbito escolar, com vistas a possibilitar aos estudantes a vivência da sua corporeidade e do seu corpo de forma livre e espontânea, precisamos refletir e problematizar as abordagens pedagógicas que têm sido promovidas e experienciadas pelos(as) acadêmicos(as) nos cursos de formação de professores(as).

Neste artigo, objetivamos investigar as experiências vivenciadas pela primeira autora em uma ação pedagógica da disciplina Psicomotricidade Relacional na perspectiva de Lapierre (1997), ofertada para um curso de Licenciatura em Educação Física de uma Universidade Federal do extremo Sul do Brasil, visando compreender as implicações dessas experiências na sua formação docente. Para tanto, analisamos as notas narrativas escritas pela primeira autora em um diário de campo elaborado na referida disciplina, com base na metodologia de Pesquisa Narrativa (Clandinin & Connelly, 2011).

Para orientar o leitor organizamos a escrita em três seções: incialmente, apresentamos os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa; na sequência, discutimos as experiências que aconteceram à primeira autora, a partir da sua escrita narrativa. Por fim, tecemos algumas considerações sobre o artigo.

Procedimentos metodológicos

O processo de produção da escrita narrativa da primeira autora, se deu no decorrer das aulas da disciplina Psicomotricidade Relacional, ofertada com caráter optativo no primeiro semestre de 2019 para o curso de Licenciatura em Educação Física de uma Universidade Federal do extremo Sul do Brasil. Ao final de cada aula da referida disciplina, nas quais foram proporcionadas diversas ações pedagógicas com base na perspectiva de Lapierre (1997) – rito de entrada, sessão propriamente dita e rito de saída – era solicitado aos acadêmicos(as) que escrevessem nos seus diários de campo notas sobre as experiências vivenciadas na aula.

Para Clandinin e Connelly (2008, tradução nossa) a razão principal para o uso da narrativa na investigação educativa é que nós seres humanos somos organismos contadores de histórias, organismos que individualmente e socialmente vivemos vidas relatadas. Nesse sentido, Clandinin e Connelly (2001) acrescentam que a produção e a investigação de escritas narrativas, em especial, na formação de professores(as) podem contribuir para a tomada de consciência sobre as experiências que lhes acontecem, tornando-as mais significativas para si e para outros. Corroborando Galvão (2005) acentua que

A narrativa como processo de investigação, permite-nos aderir ao pensamento experiencial do professor, ao significado que dá às suas experiências, à avaliação de processos e de modos de atuar, assim como permite aderir aos contextos vividos e em que se desenrolaram as ações, dando uma informação situada e avaliada do que se está a investigar. (p. 343)

Todavia, na investigação de narrativas precisamos considerar que cada fragmento corresponde a uma reconstrução particular da narrativa de um sujeito, situada em um determinado tempo e espaço, podendo ocorrer tantas outras reconstruções que não foram narradas naquele momento da escrita (Clandinin & Connelly, 2011). Diante disso, investigamos neste artigo um recorte das notas narrativas do diário de campo da primeira autora, na qual a mesma narrou a vivência de uma ação pedagógica na referida disciplina, em que pôde experienciar o planejamento e a aplicação de uma ação pedagógica de Psicomotricidade Relacional para crianças entre seis meses e dez anos de idade. Esta ação pedagógica foi realizada nos espaços da Universidade, totalizando dez horas entre planejamento e intervenção.

No planejamento e no desenvolvimento da ação foram proporcionados três momentos. Inicialmente, no rito de entrada os participantes foram organizados em roda a fim de que fosse explicado o objetivo da ação pedagógica, que consistia no brincar com os objetos disponibilizados, bem como fosse combinado algumas regras necessárias ao convívio, como respeito e o cuidado com os(as) colegas e professores(as). Na sequência, sessão propriamente dita, os(as) participantes foram instigados a brincar de forma livre e espontânea com os objetos que disponibilizados, dentre os quais destacaram-se tecidos, caixa de papelão, balões, prendedores de roupa e almofadas. Por fim, no rito de saída foi solicitado aos(às) participantes que se acomodassem de forma confortável para que pudessem relaxar ouvindo uma história, na qual a personagem principal era uma “boneca humana”.

Na análise desta narrativa adotamos a metodologia de Pesquisa Narrativa, a qual é definida como “uma pesquisa relacional quando trabalhamos no campo, movendo-nos do campo para o texto do campo, e do texto do campo para o texto da pesquisa” (Clandinin & Connelly, 2011, p. 97). De acordo com os autores, a narrativa configura-se em um componente central para o entendimento da experiência, podendo ser utilizada tanto como fenômeno sob estudo, quanto método de estudo.

Como fenômeno, a narrativa visa possibilitar aos(às) professores(as) refletirem sobre a vivência de suas experiências em um movimento de ir e vir: ir do campo (experiência vivida) para os textos de campo (experiência narrada) e, de volta dos textos de campo para os textos de pesquisa (experiência refletida), num processo de reconstrução das experiências. A narrativa enquanto método nos possibilita conceituar a experiência dentro do espaço tridimensional em termos: dimensão pessoal e social – interação, introspectivo (sentimentos, crenças, reações); dimensão temporal – continuidade, retrospectivo (passado) e o prospectivo (presente e futuro); dimensão espacial – situação, extrospectivo (meio ambiente, lugar) (Clandinin & Connelly, 2011).

Face ao exposto, a partir da experiência da primeira autora vivenciada na ação pedagógica proposta na disciplina de Psicomotricidade Relacional (experiência vivida no campo), a mesma elaborou no diário de campo notas narrativas com as reflexões desta experiência (experiência narrada no texto de campo). Com essa narrativa construímos uma conversa com a literatura (experiência refletida no texto da pesquisa), apresentada nesta escrita.

Esta experiência no texto da pesquisa foi conceituada em termos do espaço tridimensional: introspectivo – sentimentos, crenças e reações manifestadas na interação com os(as) participantes na intervenção pedagógica; continuidade – momentos em que a experiência foi vivenciada e refletida na formação profissional; situação – curso de formação de professores(as) e em espaços da Universidade. Com base nisso, emergiram três categorias: “Medo e insegurança”, “Anseio e cuidado” e “Interesse e satisfação”.

Psicomotricidade Relacional: uma experiência vivenciada e refletida

Na categoria intitulada “Medo e insegurança” percebemos a manifestação destas emoções (medo e insegurança) em planejar e aplicar a ação de Psicomotricidade Relacional, pela falta de familiaridade com esta intervenção pedagógica. Além disso, a narrativa também revela a vivência de experiências de aprendizagem anteriores focadas em uma forma mais tradicional de ensino, por meio de práticas diretivas. Como podemos observar nos seguintes extratos:

[...] senti dificuldade em pensar materiais e atividades que não direcionassem a brincadeira. [...] parecia que eu não havia estabelecido um objetivo definido na proposta [...] nossa formação acadêmica nos conduz a um modelo de aula pré-estabelecido, no qual o professor propõe as atividades ou brincadeiras e os estudantes executam. [...] Quando somos confrontados com uma metodologia diferente, que se afasta do modelo tradicional, nos causa uma estranheza, pois já “naturalizamos” a ideia de que uma aula para ser bem desenvolvida precisa além de ser planejada, ser conduzida pelo professor que deve nos direcionar ao alcance dos objetivos propostos (autora 1).2

Para Maturana (2002, p. 29), a educação consiste em um processo contínuo que se estende por toda a vida dos sujeitos, sendo conservada por gerações, o que “[...] não significa, é claro, que o mundo do educar não mude, mas sim que a educação, como sistema de formação da criança e do adulto, tem efeitos de longa duração que não mudam facilmente”. Isso explica a dificuldade, muitas vezes, de se romper com um modelo tradicional de ensino, no qual o(a) professor(a) pode ter experienciado por um longo tempo na sua formação.

Nos cursos de formação de professores(as), não muito diferente da Educação Básica, por vezes, o modelo de aula predominante é aquele em que os(as) estudantes tem pouca ou nenhuma interação com os objetos do conhecimento, com outros sujeitos e com o próprio ambiente de aprendizagem. Neste modelo, são privilegiadas ações em que os sujeitos permaneçam passivos sentados em suas classes, respondendo minimamente as explicações e tarefas dirigidas pelos(as) professores(as).

Contudo, a intervenção pedagógica da Psicomotricidade Relacional vem romper com este modelo tradicional de ensino, uma vez que esta proposta por meio do jogo simbólico espontâneo busca a fluidez permanente do movimento e não corpos estáticos (Lapierre, 1997, tradução nossa). Nessa lógica, o(a) professor(a) desempenha muito mais uma ação de mediação do que de direção da classe. De modo análogo, ação dos(as) estudantes também muda, posto que os(as) mesmos(as) precisam assumir uma postura ativa e autônoma na construção do seu conhecimento.

Dessa forma, esse jogo espontâneo será para o(a) professor(a) uma fase ‘não diretiva’ e de ‘retiro’, e para os(as) estudantes uma fase de ‘insegurança’. Isso porque na medida em que o(a) professor(a) estabelece uma relação corporal com os(as) estudantes, o mesmo sem expressar um desejo e nem um julgamento vai aumentando a liberdade dos(as) estudantes e retirando-se do jogo, até que o grupo formado pelos(as) estudantes possa assumir sua autonomia. Nesse sentido, a insegurança pode surgir tanto para o(a) professor quanto para o(a) estudante, visto que ambos passam a assumir uma liberdade para a qual não estavam preparados, pois ainda se encontram apegados a uma ideia construída de dever e de obrigação em fazer algo que atenda as expectativas de outros sujeitos (Lapierre & Aucouturier, 1985, tradução nossa).

No tocante a liberdade dos estudantes em viver e sentir o próprio corpo com movimentos livres, este, no contexto escolar, ainda fica restrito a tempos e espaços específicos como o recreio e as aulas de Educação Física. A respeito disso, Lapierre (1993, tradução nossa) acrescenta que até mesmo nas aulas de Educação Física os(as) estudantes não vivenciam a liberdade dos seus corpos, pois o desenvolvimento de algumas atividades tidas como livres pelos(as) estudantes, do ponto de vista dos(as) professores(as) podem parecer anárquicas e indisciplinares.

Segundo Bersch e Piske (2020), muitas vezes, os(as) professores(as) desconhecem a importância e o valor do brincar livre para o desenvolvimento psicomotor dos sujeitos, atribuindo o ato de brincar a um passatempo, sem funções pedagógicas que serve apenas como entretenimento. Isso porque, vivemos em uma cultura ocidental em que .muitos de nós perdemos a capacidade de brincar, pelo fato de estarmos continuamente submetidos às exigências do competir, projetar uma imagem ou obter êxitos, numa forma de vida já descrita como luta constante pela existência” (Maturana & Verden-Zõller, 2004, p. 230). Contudo, a oferta de vivências e de experiências com a Psicomotricidade Relacional na formação de professores(as) de Educação Física, poderá contribuir para que o(a) futuro(a) professor(a)

[...] identifique que o ato de brincar na Educação Física tem um objetivo a ser atingido e que a Psicomotricidade Relacional pode ser uma forma de analisar e auxiliar os alunos num processo de construção do conhecimento, relação com outros sujeitos, valores, regras, bem como adentrar na liberação do imaginário da criança (Bersch & Juliano, 2015, p. 126).

Uma das grandes vantagens da Psicomotricidade Relacional é o brincar livre que a criança desenvolve em sua trajetória e esse é um componente pedagógico potente nas interações que ocorrem. Importa destacar que “dentro desse marco relacional, o mais importante é trabalhar com o que a criança (ou adulto) tem de positivo, com o que ela sabe fazer, e não se preocupar com o que ela não sabe” (Bersch et al.; 2020, p. 315). Adotar estratégias pedagógicas que partem daquilo que o sujeito tem de potencial, a fim de que esse se interesse e se envolva na proposta para amenizar ou sanar possíveis dificuldades e necessidades em diferentes aspectos biopsicossociais, poderá promover significativas aprendizagens.

Na escola, assim como em outras instituições sociais, ainda prevalecem resquícios de um passado histórico em que eram privilegiadas práticas pautadas na moralização, no controle e na disciplina dos corpos, sendo contida toda e qualquer forma de liberdade e de divertimento (Soares, 2005). Ao longo da história nossos corpos vêm sendo disciplinados a produzir comportamentos de acordo com padrões de determinados tempos e espaços como uma forma de controle, existe a hora e o lugar para se mover, brincar, falar e se expressar.

Neste contexto, a corporeidade, o corpo e as práticas corporais ainda são alvo de olhares que julgam e desejam a adequação dos gestos segundo a sua utilidade, separando-o em atividades consideradas intelectuais ou físicas. Na sala de aula é preciso um corpo imóvel e silencioso, na quadra um corpo que se movimenta, mas somente em momentos e com movimentos específicos quase sempre determinados pelo(a) professor(a). Com base nisso, compreendemos que a liberdade experienciada na ação de Psicomotricidade Relacional, quando não vivenciada em outros espaços formativos, em um primeiro momento poderá causar algum tipo de medo ou insegurança tanto no(a) professor(a) quanto nos(as) estudantes que a experenciam.

Na categoria nomeada “Anseio e cuidado”, percebemos a manifestação de um anseio com relação a promoção de uma pedagogia centrada no(a) estudante, como sujeito ativo(a) na construção do seu conhecimento. Além disso, o cuidado com a escolha de materiais que pudessem despertar a atenção dos(as) estudantes para a brincadeira, proporcionando uma maior interação consigo mesmo, com as outras crianças e adultos, bem como com o ambiente e com os materiais. A seguir estão os excertos que evidenciam este pensamento:

Ainda que concorde com uma pedagogia relacional, com a promoção de ações pedagógicas em que os estudantes sejam protagonistas, autônomos e ativos na construção do seu conhecimento [...]. Levamos uma grande quantidade de materiais com o receio de que as crianças não se interessassem pela brincadeira [...]. Somado a isso, ainda houve uma preocupação em agrupar as crianças para que interagissem juntas, porém nem todas estavam dispostas a interagir umas com as outras. Algumas crianças interagiram somente com os materiais e com o ambiente, outras crianças com os adultos que estavam observando a sessão (autora 1).

Segundo Lapierre e Aucouturier (1985, tradução nossa) na interação dos sujeitos com os objetos, em uma intervenção pedagógica de Psicomotricidade Relacional, o aspecto essencial não está na ação, no movimento, no deslocamento ou na manipulação, mas sim na sua vivência espontânea e emocional. Corroborando Maturana e Verden-Zõller (2004, p. 131) acrescentam que “[...] o modo como interagimos com o outro é um assunto emocional, pois nossas emoções especificam, a cada instante, o domínio de ações em que estamos nesse instante”.

Dessa maneira, entendemos que o modo como os(as) estudantes interagem, se interessam e assumem o seu protagonismo e a sua autonomia vai depender das emoções que estão experienciando no momento da vivência. Com base nisso, poderão se tornar sujeitos mais ou menos ativos, interativos, passivos ou introspectivos nas ações que manifestam. Contudo, no processo de ensino e de aprendizagem, os aspectos afetivos, emocionais e sociais, que dizem respeito as relações entre os sujeitos, nem sempre são valorizados em detrimento de dimensões cognitivas e motoras. Para Lapierre (2008, p. 17, tradução nossa), “[...] essa evidência afetiva é o componente fundamental da personalidade. É de uma ordem distinta da vivência intelectual, mas interfere constantemente e a direciona em grande parte. Nós vivemos com nossos sentimentos tanto ou mais que com nossa inteligência”.

Nesse contexto, pensar a Educação Física com base na intervenção pedagógica da Psicomotricidade Relacional, nos possibilita reconhecer que “o corpo na escola é constantemente afetado um pelo outro, assim como é afetado pelo ambiente em que está inserido” (Alves et al., 2019, s./p.). Isto quer dizer que o(a) estudante ao estabelecer relações com outros sujeitos, com os espaços escolares, com os objetos e as práticas de ensino afetará e será afetado de alguma forma pelas experiências que vivencia, a partir disso poderá desencadear diversas emoções e ações.

A depender da emoção que o(a) estudante desencadeia, muitas vezes, poderá (re)agir de forma passiva ou ativa, respectivamente, internalizando ou externalizando as suas emoções. Neste caso, a experiência com Psicomotricidade Relacional, pode ser especialmente benéfica ao desenvolvimento da pessoa, visto que através das relações afetivas que o(a) estudante estabelece com o outro, consigo mesmo e com os objetos poderá promover o desenvolvimento socioafetivo e emocional, de modo a perceber com mais clareza o seu lugar no mundo e o seu papel social (Bersch & Juliano, 2015).

Dessa forma, quando o(a) professor(a) disponibiliza uma quantidade variável de objetos aos estudantes em uma intervenção pedagógica de Psicomotricidade Relacional, os sujeitos inicialmente os utilizam de forma espontânea estabelecendo relações com o outro, como meios de troca de agressão, de sedução e de desejos. Aos poucos esses objetos vão sendo carregados de valores afetivos, com base na utilização simbólica em que se encontram os corpos dos sujeitos no momento da intervenção, isto é, os sujeitos passam a atribuir um significado para os objetos e para as relações que se estabelecem com ele e partir dele, por exemplo aros podem representar casas ou o ventre materno. Nesse jogo espontâneo o sujeito pode expressar aquilo que não pode dizer, não sabe dizer, não se atreve a dizer, de modo que nesta relação que se estabelece não há julgamento e nem culpabilização. Com isso, o sujeito pode externalizar suas emoções, se libertar das tensões psíquicas e solucionar os conflitos internos (Lapierre, 1993).

Com base nisso, se quisermos proporcionar aos estudantes uma Educação Física em que possam vivenciar a sua corporeidade e os seus corpos na liberdade dos movimentos, precisamos considerar além dos aspectos motores e cognitivos, também os aspectos afetivos emocionais e sociais das relações entre os sujeitos. Para isso devemos (re)conhecer que em cada comportamento, gesto, atitude dos(as) estudantes estão implicadas emoções, e é por meio dessas que os sujeitos expressam e comunicam aquilo que o “corpo precisa, o que lhe está faltando ou até mesmo o que tem em excesso” (Alves et al., 2019, s./p.).

Nesse sentido, emerge a necessidade do(a) professor(a), “[...] construir um espaço relacional em que os elementos afetivos e emocionais estejam efetivamente presentes, visto que favorecem a aquisição de conhecimentos e construção da personalidade” (Bersch & Piske, 2020, p. 13). Assim, poderá criar um ambiente de aprendizagem no qual cada estudante possa viver e se relacionar com a sua corporeidade da forma como é e do que possa vir a ser, libertando-se de formas de controle e julgamentos que possam lhe causar alguma forma de negação ou de constrangimento, aceitando a si próprio e ao outro.

Complementar às categorias anteriores, nesta intitulada “Interesse e satisfação”, compreendemos a manifestação do interesse em buscar uma formação que possibilite vivenciar e promover diferentes experiências, de modo a contribuir para a (re)construção de saberes com vistas a oportunizar um ensino de Educação Física por meio de abordagens e intervenções pedagógicas diversificadas. Além disso, percebemos a satisfação em refletir as próprias experiências formativas. Nos fragmentos a seguir apresentamos esta concepção:

[...] alguns questionando e refletindo, outros somente experienciando. Com isso não quero dizer que a experiência não seja importante, mas que a reflexão da experiência nos leva a questionar e a teorizar nossa prática enquanto futuros professores de Educação Física [...]. É preciso uma desconstrução deste modelo de aula tradicional construído culturalmente (autora 1).

Refletir a própria aprendizagem e a prática pedagógica é uma ação inerente ao fazer docente (Tardif, 2019), a qual deve ser estimulada em todos os cursos de formação de professores(as). Segundo Maturana e Varela (2005, p. 67-68) esta ação se constituí como “[...] um ato de nos voltarmos sobre nós mesmos, a única oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras e de reconhecer que as certezas e os conhecimentos dos outros são, respectivamente, tão nebulosos e tênues quanto os nossos”. O(a) professor(a) ao refletir sobre as experiências formativas que o(a) constituí, poderá compreender e problematizar as limitações e as potencialidades dessas no seu fazer docente, de modo a vivenciar e promover abordagens e intervenções pedagógicas de ensino que possam ser mais significativas para si e para os(as) estudantes com quem se relaciona.

Dessa forma, antes de (re)pensarmos a escola é preciso fazermos esse exercício sobre a formação de professores(as), especialmente, nos cursos baseados em conhecimentos e técnicas de diferentes disciplinas, que não se preocupam com o saber do sujeito como um ser existencial (Lapierre & Aucouturier, 1985, tradução nossa). Este caráter baseado no tecnicismo e em saberes disciplinares, ainda perpetuado em algumas instituições de ensino tem raízes em um passado no qual o rigor científico e técnico sobressaía as questões existenciais da humanidade (Soares, 2005).

Nesse sentido, se torna cada vez mais emergente a necessidade dos cursos de formação de professores(as) de Educação Física, a nível inicial e continuada, oportunizarem experiências formativas de modo a instigar o interesse dos(as) acadêmicos(as) a vivenciarem e promoverem outras abordagens e intervenções pedagógicas. Em especial, argumentamos sobre a vivência da Psicomotricidade Relacional, uma vez que essa nos possibilita compreender os sujeitos na sua totalidade, com dimensões corporal, intelectual, afetivo e social (Lapierre, 1997).

No tocante à Educação Física, Lapierre (1993, tradução nossa) reconhece que esta disciplina ocupa um lugar privilegiado na escola, sendo capaz de potencializar o corpo em movimento, com todas as suas nuances, compartilhando como um aspecto comum a Psicomotricidade Relacional, os corpos que têm uma vontade e prazer em se moverem. Apesar disso, como já mencionado em outro momento do texto, o autor discorre que na Educação Física o desejo deste corpo que se move está dirigido pelo contexto consciente do(a) professor(a), que por vezes nega os sujeitos, já na Psicomotricidade Relacional não se deseja que essa movimentação seja direcionada, ao contrário ela precisa ser livre e espontânea.

Para Bersch e Juliano (2015, p. 126-127) oportunizar nos cursos de formação professores(as) de Educação Física a vivência e a construção de conhecimentos sobre a Psicomotricidade Relacional, poderá contribuir para que os(as) futuros(as) professores(as) venham a dialogar e refletir, reconhecendo que

[...] diferentemente das aulas dirigidas e com movimentos, jogos e brinquedos pré-estabelecidos, nas sessões de Psicomotricidade Relacional o improvável muitas vezes acontece possibilitando uma maior riqueza de experiências, pois cada aluno traz uma bagagem de conhecimentos adquiridos no meio em que vive.

Entretanto, para que o(a) professor(a) possa vislumbrar as potencialidades e os benefícios desta intervenção pedagógica na promoção de ricas experiências que contribuam com desenvolvimento psicomotor dos(as) estudantes, torna-se imprescindível que os(as) acadêmicos(as) vivenciem as sessões de Psicomotricidade Relacional ao longo da sua formação docente, por meio da experiência do brincar livre e do interagir com os seus pares e com objetos (Bersch & Juliano, 2015; Bersch & Piske, 2020). Ao entrar no jogo simbólico o(a) professor(a) poderá confrontar com o seu próprio eu, por meio da tomada de consciência do seu universo psicoafetivo corporal que tem raízes no inconsciente, bem como descobrir em paralelo o universo afetivo com os outros. Com isso, poderá adquirir conhecimentos sobre os mecanismos que modulam a sua relação com os outros, e criar estratégias para melhor adaptar a sua comunicação corporal. Isso afetará não só a sua relação familiar e social, como também a profissional (Lapierre, 1993, tradução nossa).

Na formação de professores(as) de Educação Física, essa tomada de consciência pelo sujeito sobre o seu processo psicoafetivo corporal, bem como sobre os aspectos afetivos e emocionais dos(as) estudantes, poderá contribuir para que o(a) professor(a) modifique as suas formas de ensino de Educação Física, em consonância a uma proposta pedagógica com “menos diretividade, mais escuta, diálogo e criatividade, tanto por parte do professor quando dos alunos” (Lapierre, 1993, p. 295, tradução nossa). Para Bersch e Juliano (2015, p. 132) quando o(a) professor(a) de Educação Física percebe-se no emaranhado de relações que se estabelecem na Psicomotricidade Relacional, “torna-se mais sensível, perceptível, atento e criativo, ou seja, relacional”. Com isso, o(a) professor(a) poderá melhorar a sua comunicação corporal e a qualidade das relações sociais que serão estabelecidas entre os sujeitos, para além do espaço escolar.

Considerações

Retomando o nosso objetivo no artigo – investigar as experiências vivenciadas pela primeira autora em uma ação pedagógica da disciplina Psicomotricidade Relacional ofertada para um curso de Licenciatura em Educação Física de uma Universidade Federal do extremo Sul do Brasil – emergiram três categorias que nos possibilitaram compreender as implicações dessas experiências na sua formação docente: “Medo e insegurança”, “Anseio e cuidado” e “Interesse e satisfação”.

Na primeira “Medo e insegurança” revelamos a manifestação das emoções de medo e de insegurança em planejar e aplicar uma ação de Psicomotricidade Relacional, de forma que os(as) participantes pudessem vivenciar sua corporeidade e o seu corpo em movimento livre e espontâneo, sem que houvesse uma interferência diretiva no jogo simbólico. A partir disso, percebemos dois aspectos que podem ter contribuído para a manifestação dessas emoções, como: a falta de familiaridade com esta proposta e a vivência de experiências formativas anteriores focadas em uma forma mais tradicional de ensino, na qual pouco pôde experienciar o seu corpo livre.

Em relação a segunda “Anseio e cuidado”, observamos um anseio em promover uma pedagogia centrada no(a) estudante e o cuidado na escolha de materiais que despertassem a atenção e a interação entre os(as) participantes. Com base nisso, compreendemos que a ação ativa ou passiva, bem como a atenção e a interação entre os(as) estudantes depende das emoções que serão desencadeadas no estabelecimento das relações com outros, sejam eles objetos, sujeitos ou espaços. Disso decorre que, cada gesto, movimento e atitude dos(as) estudantes está investida de um significado que deriva e comunica uma emoção.

Na terceira categoria “Interesse e satisfação”, apontamos o interesse em vivenciar e promover diferentes experiências de abordagens e intervenções pedagógicas de ensino de Educação Física e a satisfação em refletir as próprias experiências formativas. Entendemos que a promoção e a experiência de sessões de Psicomotricidade Relacional na formação de professores(as) podem contribuir para que os(as) professores(as) compreendam os(as) estudantes a partir das suas dimensões corporal, intelectual, afetivo e social. Também evidenciamos que essa intervenção, por meio da vivência corporal do jogo simbólico, possa instigar a tomada de consciência do(a) professor(a) sobre o seu processo psicoafetivo corporal, assim como, dos aspectos afetivos emocionais dos(as) seus estudantes.

Além disso, compreender que a partir da própria experiência com as sessões de Psicomotricidade Relacional, o(a) professor(a) poderá construir saberes que o(a) possibilite promover uma intervenção pedagógica para o ensino de Educação Física tendo como pressupostos a escuta, o diálogo, a criatividade, de modo a melhorar tanto a qualidade do ensino quanto das relações sociais que serão estabelecidas entre os sujeitos. Para concluir, entendemos que com a ação reflexiva do(a) professor(a) sobre as próprias experiências formativas o(a) mesmo(a) poderá compreender e problematizar as limitações e as potencialidades dessas experiências na sua constituição e no seu fazer docente, de modo a torná-las mais significativas para si e para os(as) estudantes com quem se relaciona.


Referências

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Notas

1 Objetos que permitem ampliar as possibilidades de representação como: bastão, caixa, tecido, corda, jornal, dentre outros.

Sobre materiais não estruturados tem informações em: O Lugar dos Materiais Não estruturados em Creche e Jardim de Infância -https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/20042/1/RelatoriodoProjetodeInvestiga%C3%A7ao.pdf

2 A narrativa da autora, acadêmica da disciplina de Psicomotricidade Relacional, será apresentada ao longo do texto com recuo à direita e esquerda de 1,5 cm e espaçamento simples.

Recepción: 07 Mayo 2021

Aprobación: 20 Diciembre 2021

Publicación: 01 Febrero 2022

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