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Jogo e lúdico no conteúdo lutas em aulas de educação física escolar
Resumo: O trato pedagógico do conteúdo “lutas” ainda provoca dificuldades e tensões entre professores e alunos. Cabe questionar: quais as relações de sentido, mobilização e atividade dos alunos com os jogos de lutas? O objetivo do presente trabalho é discutir a influência de jogos nas relações de sentido e mobilização no conteúdo lutas na perspectiva dos estudantes. Trata-se de um estudo de caso com uma turma de 7º ano do Ensino Fundamental. Os procedimentos metodológicos foram: (a) observação de aulas do conteúdo “Judô”; (b) entrevistas semiestruturadas com estudantes, antes e após a sequência de aulas. Na observação das aulas, verificou-se que a professora utilizou jogos de lutas, que se mostraram adequadas para minimizar sentimentos de medo, ansiedade e estresse relacionados ao machucar-se na realização da luta. Ademais, a diversão e a ludicidade proporcionada pelos jogos promoveram uma dissociação da luta com a violência e a briga. A imersão e o arrebatamento dos alunos nos jogos de lutas possibilitaram a suspensão de impressões iniciais (luta machuca, é violenta, etc.) estereotipadas em relação às lutas, sobrepujando-os para o mundo de fantasias do jogo. Nesse sentido, os jogos de luta mostram-se essencial para o trabalho pedagógico do conteúdo lutas, sobretudo ao mobilizar a participação de alunos.
Palavras-chave: Lutas, Jogo, Educação Física escolar.
Game and ludic on Martial Arts content in physical education classes
Abstract: The pedagogical treatment of the “martial arts” content causes difficulties and tensions between teachers and students. It is important to ask: what is the meaning given to the mobilization and the activities of students in martial art games? The aim of this paper is to discuss the influence that games have on mobilization and meanings of martial art content from the student’s perspective. This is a case study with a 7th grade middle school classroom. The methodological procedures were: (a) observation of “Judo” classes, and (b) semi-structured interviews with students before and after the sequence of classes. From classes observation, we realized that the teacher used martial art games which were appropriate to minimize the feeling of fear, anxiety, and stress related to getting hurt during the practice. In addition, the fun and playfulness provided by the games promoted a dissociation of martial arts from violence and fighting. The immersion and absorption of students in martial arts games have promoted the end of stereotyped initial impressions of martial arts (e.g. martial arts hurts, it is violent, etc.), taking them to a fantasy game world. In this way, games proved to be essential for the pedagogical approach to martial arts content, especially by promoting students’ participation.
Keywords: Martial arts, Game, Physical Education.
Introdução
O trabalho pedagógico com o conteúdo “lutas” ainda engendra certas dificuldades, dúvidas e tensões entre professores e alunos. Nascimento e Almeida (2007), em pesquisa com professores, atribuem dois principais fatores para a restrição do conteúdo nas escolas: a formação inicial deficiente/insuficiente e a suposta violência intrínseca atribuída pelos atores escolares ao tema.
A exclusão ou menor trato das lutas como conteúdo da Educação Física escolar também foi constatado em estudo de Betti, Maffei, So e Ushinohama (2015). Neste, em questionário com 455 alunos do Ensino Fundamental da rede estadual de ensino de São Paulo, os autores identificaram que as lutas representaram 3% do total de conteúdos “que o professor mais ensina”. Esse dado se mostra contraditório, pois os alunos questionados partilham de um currículo oficial estadual, que propõe o trato de cinco modalidades de lutas ao longo do processo de escolarização. Nota-se, claramente, um descompasso entre as proposições elaboradas por políticas públicas e a efetiva implementação nas aulas, evidenciando um distanciamento entre saberes produzidos por intelectuais-acadêmicos e professores escolares.
Do ponto de vista dos saberes docentes, muitos professores lidam com uma “encruzilhada”. Por um lado, necessitam implementar mudanças curriculares a favor de uma diversificação e ampliação de elementos da cultura de movimento. Por outro, não dominam conhecimentos específicos e pedagógicos acerca destes conteúdos. Este é o caso do conteúdo “luta” que ainda convive com dificuldades de trato pedagógico.
Nesse contexto, na tentativa de solucionar este impasse, alguns trabalhos como os de Parlebas (1990) e Olivier (2000), tal como vários currículos oficiais de Educação Física de estados e municípios, têm sugerido jogos de lutas/de oposição/de combate no trato didático-pedagógico das lutas. A título de exemplo, caracterizam-se como jogos de lutas: o jogo de caça aos lenços, o cabo de guerra, as brincadeiras de retirar o colega de dentro de um círculo desenhado no chão, os jogos de apanhar prendedores de roupas presos no corpo, etc.
Compreendemos o jogo como uma manifestação que propende à ludicidade, à entrega plena (Luckesi, 2014). O jogo é um extrato e resumo da nossa cultura, já que é uma das formas mais criativas e substanciais de o indivíduo agir no mundo, expressar-se e socializar. É, também, pelo jogo que cada indivíduo pode exercer sua expressividade (Grillo, 2018). Neste sentido, Scheines (1998), Fink (1966) e Buytendijk (1936) inferem que o jogar engendra a criação de um território, uma espécie de campo de jogo. Porém, isso não diz respeito a um espaço num sentido abstrato ou simbólico, mas numa perspectiva de uma demarcação cultural. Em poucas palavras, cria-se um território de jogo que possui uma linguagem própria, instrumentos, ações específicas, representações, maneiras de agir e pensar, discursos e práticas, dentre outras construções. Essencialmente, o indivíduo ao jogar se relaciona com conteúdos culturais que ele reproduz e transforma, ou seja, existe uma dinâmica de significações e ressignificações no contexto do jogo (linguagem do jogo).
Diante disso, defendemos que a escola pode ser um espaço privilegiado em que o jogo e o lúdico, podem ser vivenciados de diferentes maneiras (do caráter livre ao caráter pedagógico). Assumimos que o lúdico e o jogo, são formas de expressividade humana plena e, destarte, consideramos que o lúdico é o que faz o jogador jogar (Henriot, 1989).
Todavia, cabe problematizar: quais são as contribuições e possibilidades de inserção do jogo no ensino do conteúdo lutas?
Tomando esta problemática como ponto de partida, intentamos descortinar caminhos e respostas para estes questionamentos. Destarte, assumimos o interesse pela perspectiva dos alunos por compreendermos que estas indagações são melhor respondidas por eles, que são objeto do processo de ensino e sujeitos da aprendizagem, sendo, portanto, um dos vértices da triáde ensino, aprendizagem e conhecimento.
Sob este viés, com a intenção de subsidiar a relação dos alunos com os saberes escolares, tomamos as contribuições da “teoria da relação com o saber” de Bernard Charlot (2000, 2001), Nicole Mosconi (1989) e Jacky Beillerot (1989), como referenciais teóricos da presente investigação.
Vale dizer que o grande trunfo da “teoria da relação com o saber” (Charlot, 2000; Mosconi, 1989; Beillerot, 1989) é a compreensão de que somos, ao mesmo tempo, sujeitos sociais (em relação com a família, amigos, escola, etc.) e singulares, o que é chamado pelo autor de “sociologia do sujeito”. Sendo assim, para Charlot (2000, p. 51), “nascer significa estar submetido à obrigação de aprender” para pertencer a uma sociedade pré-estruturada. A partir disso, Charlot (2000, 2001), Beillerot (1989) e Mosconi (1989) propõem que a aprendizagem dependa de três elementos propulsores: a mobilização, a atividade e o sentido.
A mobilização significa reunir esforços para iniciar algo, é o “movimento interior do sujeito” (Charlot, 2001, p.26), e não exterior, gerado por algo ou alguém, como é o caso da motivação denominada extrínseca. Logo, quem se mobiliza põe-se em movimento em uma atividade. Por seu turno, a atividade é depreendida como um conjunto de ações desencadeadas mediante um móbil que visa atingir um objetivo, uma meta (Charlot, 2000). Entretanto, a mobilização pelas coisas do mundo é seletiva, dado que o patrimônio humano é infinito e, consequentemente, seria impossível aprender tudo. Isto significa que o sujeito tão-somente se põe em movimento interior para as coisas que despertam desejo, interesse, de saberes que produzem sentidos.
Charlot (2000) destaca a teoria da relação com o saber em três dimensões: epistêmica (a natureza do conhecimento), identitária (referente ao “eu”) e social (referente a “nós”).
Na dimensão epistêmica, como exemplifica Charlot (2001, p.22): “não são os mesmos ‘aprenderes’ [...] que permitem ser um bom aluno e ser um líder em um bairro de subúrbio”. Epistemicamente, o saber/aprender apresenta-se em três principais figuras (Charlot, 2000, 2001; Beillerot, 1989):
saber-objeto: representa um conteúdo linguisticamente enunciado. Por exemplo: expressões aritméticas, gramática, história do judô;
saber-domínio: consiste em dominar um objeto ou uma atividade. Por exemplo: aprender a nadar, aprender a fazer um rolamento do judô, a dar um golpe, amarrar uma faixa de judô;
saber-relacional: consiste no domínio de formas relacionais. Por exemplo: fazer amizades, respeitar um colega de treino nas aulas de judô.
Na dimensão identitária, a aprendizagem remete à singularidade do sujeito; quer dizer, o aluno não interioriza passivamente as coisas presentes no mundo, mas as que julga de maior valor e importância frente “às suas expectativas, às suas referências, à sua concepção de vida, às suas relações com os outros, à imagem que tem de si e à que quer dar de si aos outros” (Charlot, 2000, p.72).
Já a dimensão social considera que o sujeito vive em um mundo desigual, de diversas relações sociais, de diferentes culturas, e isso também induz a certos caminhos e relações com os saberes existentes no mundo. Portanto, a escola também pode ser considerada como um “lugar que induz relações com os saberes” (Charlot, 2001, p.18).
Faz-se decisivo destacar que a relação social com o saber, para Charlot (2000) e Beillerot (1989) não é uma determinação, mas uma probabilidade de indução. Por exemplo, o fato de uma criança morar em uma comunidade conhecida por formar atletas de lutas não nos permite concluir que esta criança será também lutadora, mas possivelmente induzirá certas relações com os saberes das lutas.
Para tal, este é um estudo que tomará como ponto de partida as relações que os alunos estabelecem com as lutas e com os jogos de lutas. Quais os sentidos prévios dos alunos acerca das lutas? Como os jogos atuam nos sentidos e mobilização com respeito ao conteúdo lutas?
Assim, é escopo desta investigação compreender a luta na perspectiva dos alunos, bem como, analisar e discutir, a partir de uma intervenção, a influência dos jogos de lutas nas relações de sentido e mobilização, a partir da “teoria da relação com o saber” (Charlot, 2000; Mosconi, 1989; Beillerot, 1989), concatenada às teorias de jogo que subsidiam a prática pedagógica com os jogos no contexto escolarizado.
Método: “As regras da luta”
O presente estudo é desdobramento de uma pesquisa maior que buscou analisar, de maneira mais ampla, como discentes se relacionam com o conteúdo lutas nas aulas de Educação Física. A discussão sobre jogo não foi eleita a priori como questão elencada; no entanto, a observação de campo demonstrou a importância de problematização deste tema. Vale ressaltar que tal problematização está em acordo com o paradigma de pesquisa qualitativa, cuja metodologia admite um pequeno grau de estruturação prévia e flexibilidade nos procedimentos em função do desenrolar do trabalho (Alves-Mazzotti, 1999).
Na ocasião, como delimitação da problemática de pesquisa, foi selecionada uma turma de alunos que não havia aprendido o conteúdo lutas nas aulas de EF, de modo que tal situação permitiria também analisar suas expectativas. A rede pública estadual de são paulo, no município de bauru, foi tomada como locus da investigação, já que o eixo de conteúdos “lutas” está presente no currículo de educação física do estado de são paulo (CEF-SP) em cinco ocasiões (São Paulo, 2008). Como no 7º ano do Ensino Fundamental se dá o primeiro contato dos alunos com esse conteúdo (judô), este foi o ano escolar elegido. Outro critério estabelecido levou em consideração a história de vida da/o docente, que não participou como praticante/atleta de qualquer modalidade de luta, o que garantiu uma situação compatível com o perfil da maioria dos professores de Educação Física, em termos de conhecimento do conteúdo.
A escola selecionada localiza-se na periferia de Bauru, e contava com três professoras de EF; no entanto, apenas uma ministrava aulas nas turmas de 7° ano. A turma investigada possuía 31 alunos, composta por 16 meninas e 15 meninos. No período da pesquisa foram realizadas: (i) entrevistas semiestruturadas com a docente; (ii) entrevistas semiestruturadas com 17 alunos (12 alunos, selecionados por sorteio, entrevistados antes das aulas; e 17 alunos após a intervenção docente, sendo, os mesmos 12 alunos, acrescidos de mais 5 discentes selecionados intencionalmente); (iii) observação das aulas do conteúdo judô (4 aulas). Para a atual investigação, o recorte eleito, referente aos jogos de lutas, se valerá das entrevistas semiestruturadas com os 17 alunos (10 meninos e 7 meninas) do 7º ano do Ensino Fundamental e das observações das aulas do conteúdo Judô. Os nomes dos alunos entrevistados foram omitidos, sendo substituídos por nomes fictícios.
Os dados serão apresentados de modo descritivo e interpretados a partir da “triangulação” das diferentes fontes (conhecimento do conteúdo/tema, planejamento das aulas, observação das aulas e entrevistas), bem como pelo diálogo/confronto com as questões teóricas postas pela literatura.
A atual investigação foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”. Todos os participantes e responsáveis receberam instruções e informações necessárias para a participação da pesquisa e autorizaram a utilização de dados mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados e discussão: “Mobilizações e sentidos de jogar e lutar”
Os resultados e as discussões serão apresentados em três momentos. Em um primeiro momento, buscaremos compreender os significados atribuídos pelos estudantes sobre as lutas. Para tanto, no período anterior à intervenção docente com o conteúdo Judô, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os alunos. Em segundo momento, serão descritos os acontecimentos gerais das aulas, destacando os jogos de lutas abordados pela docente. E por fim, analisaremos os depoimentos dos alunos acerca dos jogos de lutas vivenciados nas aulas.
A relação inicial dos alunos com as lutas
Dos 12 alunos entrevistados antes das aulas de judô, cinco apresentaram recusa na aprendizagem de lutas. Suas impressões iniciais sobre a temática estavam relacionadas ao medo de se machucar e na crença da existência de uma suposta violência associada à luta:
"Luta é chata, só vê a pessoa apanhando e aí sai sangue" (Ana);
"É uma briga, um chute, assim, por exemplo, você bate aí sai sangue [...] machuca, vai ficar roxo, a perna, o braço" (Anderson);
"É uma coisa agressiva, um método que machuca" (Talita);
“É um pouco violento [...] por causa que os cara vai se bater lá, bate um na cara do outro, fica roxo" (Lucas).
De modo geral, os alunos possuíam o entendimento que a luta carrega intrinsecamente a violência como elemento causador de danos físicos e, por este motivo, receiam se machucar nos movimentos de combate. Consoante a isso, há uma confusão, muito comum, entre os termos "lutar" e "brigar", como se a luta carregasse em si um sentimento de raiva dos praticantes, assim como sucede em uma briga.
Além deste entendimento, Paulo esboçou sua compreensão do que diferencia a luta de outras modalidades esportivas:
"O futebol a gente tá brincando, jogando. Na luta não, a gente tá batendo" (Paulo).
Neste depoimento, o aluno coloca a luta em oposição a um jogo ou uma brincadeira, como se as características próprias do jogo não tivessem espaço de aproximação com a luta no sentido da disputa entre as equipes. Em outros termos, é como se os fatores diversão e/ou ludicidade não pudessem convergir com algo que causa dano físico ao outro.
No senso comum, a violência e a agressividade são tidas como sinônimos e, a priori, nos induzem ao entendimento de “antilúdico” em relação ao jogo. No entanto, a agressividade é aqui entendida como impulso para a ação e não necessariamente ligada à violência, que, por sua vez, caracteriza-se pela intenção de causar dano ao outro. Nessa perspectiva, a agressividade pode ser potencialmente lúdica, como decorre em alguns jogos popularmente conhecidos: “passou levou” (jogo pré-desportivo de futebol/futsal, que autoriza os participantes “agredirem” o colega que teve a bola “passada” entre as pernas); “hoje não” (quem esquecer de dizer “hoje não” na chegada à escola, recebe agressões). Embora tenham um ingrediente de agressão, estes jogos não têm como objetivo ferir o outro, sendo mais uma manifestação de força, muito utilizada especialmente nos padrões de construção da masculinidade.
Aliás, o estudo de Antunes (2016) em uma escola pública, com o trato do conteúdo beisebol, jiu-jitsu e futebol americano, apontou que a agressividade pode ser um “ruído” ou um “atrator” para a mobilização do aluno. Conforme o autor, com um bom planejamento e condução, a agressividade pode favorecer à mobilização dos discentes, o que parece não ocorrer com os estudantes participantes do presente estudo.
Outra associação a se problematizar é a relação entre vivência pessoal dos alunos com a mobilização pela aprendizagem de lutas. Quando questionados sobre suas experiências relacionadas às lutas (“você já praticou lutas fora da escola?”), os mesmos cinco alunos que recusaram a aprendizagem das lutas não possuíam vivência prévia de lutas. E ao contrário, os alunos que já praticavam lutas antes das aulas, demonstraram interesse de aprender mais sobre o tema nas aulas de Educação Física. Poderia se afirmar que aqueles que em algum momento da vida experienciaram a luta, atribuíram um sentido valorativo particular em relação aos que não a vivenciaram.
Dessa maneira, conforme Charlot (2000) e Beillerot (1989), as relações identitárias e sociais prévias dos alunos condicionam a aceitação e a mobilização pela aprendizagem. E tal faceta igualmente se configura pela via oposta, o histórico de não possuir vivências anteriores é um obstáculo para os alunos se mobilizarem para aprendê-las. Destarte, os que desconhecem o universo particular das lutas tendem a não valorar e encontrar sentido para a atividade.
De modo geral, é perceptível a interferência das dimensões sociais, identitárias e epistêmicas dos alunos nas suas relações de sentido e mobilização para com o conteúdo lutas.
Em (observ)ação: a descrição das aulas
No trato do conteúdo Judô, a docente ministrou quatro aulas, e foi possível identificar três momentos neste processo. No primeiro dia, os alunos presenciaram uma aula expositiva, caracterizada pela professora como uma “introdução” ao conteúdo (slides projetados acerca de conteúdos relacionados ao judô: cores de faixa, hierarquia, disciplina, vestimenta, etc.). Em um segundo momento, na segunda e terceira aulas, os alunos realizaram atividades corporais de luta, que incluíram jogos de lutas e a aprendizagem do golpe o-soto-gari (um golpe de desequilíbrio) do Judô. E por fim, na quarta e última aula foi realizada uma avaliação escrita sobre os conteúdos desenvolvidos.
Durante o período de observação, foram desenvolvidos dois jogos de lutas (segunda e terceira aula), ministrados em duplas: (i) um cabo de guerra sem a utilização de corda e; (ii) a briga de galo. No primeiro jogo, os alunos da dupla seguravam a mão direita um do outro, como se fossem cumprimentar. A professora escolheu uma linha no piso da sala para ser o centro do confronto. O objetivo da atividade era puxar o colega para sua área, como no jogo “cabo-de-guerra”. Já a atividade “briga de galo” consistiu nos alunos agachados, de cócoras, e marcava ponto quem conseguisse desequilibrar o colega fazendo-o encostar as mãos, joelho ou glúteo no chão. Não foi permitido agarrar e puxar o colega, apenas empurrá-lo tocando mãos com mãos.
Ambos os jogos, analisando por suas lógicas internas, na presença de agarres, preensões manuais, na relação com o solo e nas transições de equilíbrio e desequilíbrio, possuem a mesma lógica das lutas de curta distância (Paes, 2010)
De modo geral, foi notado que todos os alunos presentes participaram dos jogos de maneira intensa e arrebatada, o que foi sinalizado pelo semblante dos discentes, na concentração nos jogos, nos sorrisos e nos gritos. Vale ressaltar que na atividade do golpe o-soto-gari houve situações de autoexclusão de alunos, o que não foi constatado nos jogos de lutas.
Tal situação positiva de intensa participação nos levou ao interesse de problematizar, com mais profundidade, os aspectos levantados no presente trabalho: as relações dos discentes com os jogos de lutas
O vaivém lúdico: a diversão como dissociação da luta com a violência e o medo de se machucar
Como exposto em linhas anteriores, nos momentos que antecediam as aulas de judô, a expectativa de alguns alunos era de resguardo de possíveis atos violentos dos colegas que poderiam lhes causar danos físicos e, por consequência, esperavam momentos de constrangimento e discórdia.
No entanto, mesmo nessa expectativa da metade dos entrevistados, nas atividades de jogo propostas pela professora, todos os alunos participaram. Questionados após o período de intervenção docente sobre o que acharam das aulas de lutas, muitos alunos manifestaram nessa direção:
“Ah, porque foi divertido, né? Os movimentos, estas coisas” (Hulk).
“Me diverti [...] Legal competir com os outros” (Anderson).
“Sei lá, porque foi divertido, sei lá” (Talita).
“Por que eu achei da hora? Porque é da hora, é para se divertir, você aprende coisas” (Carl Johnson).
As expressões proferidas como “legal”, “me diverti”, “divertido”, “da hora”, afora as manifestações observadas durante a aula, como alegria, riso, prazer, sinalizam elementos de ludicidade. Emerique (2004, p. 4) entende “[...] o lúdico como meio privilegiado de expressão”, por esta razão, formas de expressividade, como as supracitadas, representaram o lúdico manifestado nas situações de jogos de lutas.
Nota-se nos depoimentos dos alunos que os jogos de lutas foram capazes de proporcionar diferentes formas de expressão, o que, para muitos discentes, não era algo esperado, visto que o imaginário das lutas estava associado à violência, principalmente ao medo de se machucar.
Ao perceberem que havia diversão sentiram-se mais seguros:
“eu pensava que não ia me soltar, mas eu me soltei [...] Eu esperava que fosse só brigar, essas coisas, bater, mas não é. A professora colocou brincadeira no meio, a gente se divertiu muito” (Talita).
“Eu queria fugir da sala por causa que eu não queria fazer, mas depois comecei a gostar. No primeiro exercício que ela passou, que era de cabo de guerra. Foi diferente, foi brincando. [...] Por causa que o jeito que ela ensina é diferente, por isso eu acho isso”. (Ana)
“Luta não é um ato de violência, essa luta. É o ato de se divertir, ao mesmo tempo, você brinca, ao mesmo tempo você se diverte... e ao tanto que você faz essa luta, você conhece mais amigos e tem mais amizade” (Bruce Lee).
Talita e Ana esboçaram nestes depoimentos uma intensa resistência inicial ao conteúdo que só foi superada a partir da inclusão dos jogos. A partir do jogo, a relação entre violência e luta foi se dissipando, tornando-se um fator essencial para aqueles que tinham medo de se machucar nas aulas. Foi esse novo entendimento dissociativo sobre as lutas que permitiu a esses alunos vivenciarem o conteúdo sem medo e, sobretudo, valorando-o e ressignificando:
“Ah, porque foi tipo de uma luta legal. Não foi de machucar [...]” (Morfeu).
“Não é uma luta briguenta. Só de movimentos [...] É de movimentos leves para deslocar o cara” (Lucas).
“Eu gostei porque a princípio, achei que seria perigoso. Tipo, eu poderia me machucar, mas não foi, foi interessante, ninguém se machucou e a gente aplicou o golpe certinho no outro sem se machucar” (Elektra).
É interessante ressaltar que a inclusão de jogos de lutas foi fundamental para a diminuição do medo de se machucar dos alunos e para dissociar a luta da violência, alterando o sentido anteriormente atribuído a essa prática. A imersão dentro do jogo - que nem sempre o sujeito associa a luta, como é o caso da briga de galo -, possibilitou ao aluno a suspensão de impressões iniciais (luta machuca, sangra, é violenta, etc.), cativando-o para um mundo de fantasias do jogo que sobrepujou as tensões iniciais. Dito de outra forma, o jogo possui uma linguagem própria que pode absorver totalmente o jogador (arrebatamento) (Huizinga, 1996), ou nas palavras de Gadamer (1997, p. 101-102): “todo jogo é um ser jogado” que “acaba dominando o jogador – cativa-o”.
Também, Olivier (2000) já compreendia que os “jogos de lutas com regras” poderiam proporcionar tempo e espaço para a vivência e problematização da violência no cotidiano. Para o autor, os jogos de lutas permitiriam o simulacro da violência que, dada a característica de representação (“brincar de”), o próprio contexto pedagógico e as próprias regras das lutas impediriam práticas violentas.
O sentido elementar do jogo é sua característica de mediação, de algo que se desenrola, ou de alguém que entra em jogo. Isto é, conforme Buytendijk (1974, p.67), o vaivém lúdico é “[...] um movimento pendular contínuo entre o jogo e a vivência da realidade”. Sob esse prisma, de um lado, o sujeito, por meio do jogo, pendula à luz da realidade do cotidiano; e do outro, imerge no ambiente do jogo, caracterizado por fantasias, arrebatamento, formas de expressividade, etc. Não menos importante, vale sublinhar que a oscilação entre os polos só é mobilizada pelo jogo, e é por este motivo que se diz que o jogo atua como um mediador. Tal alternância entre cotidiano e a fantasia, entre a realidade e o imaginário, é denominado por Buytendijk (1974, p. 70) de “vaivém lúdico”, que, em seus termos, representa uma “alternância de uma tensão e de um relaxamento, vividos com surpresa”.
Esse vaivém permite, por parte do jogador, constantes ressignificações sobre o jogo. Analogamente, com inspiração em Buytendijk (1974), desenvolvemos um esquema, conforme a figura 1, em que no polo da esquerda, estaria o entendimento inicial do aluno acerca da luta, esboçadas pelas ideias de violência e o medo de se machucar, ou seja, tratar-se-ia do entendimento com base em suas próprias experiências do cotidiano, que nada mais é uma relação social, identitária e epistêmica prévia com o saber. O jogo é representado pelo pêndulo, transmitindo a ideia de mediação e de movimentação de vaivém, no sentido de trânsito e comunicação entre dois polos. No balanço oscilatório do pêndulo para a direita, ou seja, durante o jogar, o entendimento inicial acerca das lutas é deixado em segundo plano para viver a ambiência do jogo, que via de regra, pode ser caracterizado pela presença de elementos de ludicidade, diversão, fantasia, etc. No retorno do pêndulo à posição inicial, ou seja, da direita à esquerda, percebemos, pelos depoimentos dos discentes, uma alteração do entendimento da vida cotidiana, como se as experiências proporcionadas pelo jogo tivessem modificado a compreensão inicial, ressignificando-as.
A ressignificação dos sentidos iniciais dos alunos, por si só, já é relevante para a disciplina de Educação Física, pois sinaliza o rompimento de estereótipos (por exemplo: luta é violenta) encontrados com frequência em nossa sociedade. Contudo, adicionalmente, é preciso ressaltar que os jogos de lutas permitiram a entrada dos estudantes em um novo universo de significações e de linguagem própria partilhada por aqueles que vivenciam ou praticam lutas. Conforme Charlot (2000), aprender significa adentrar a uma comunidade virtual de pessoas que se relacionam ou se relacionaram com o mesmo patrimônio humano.
Sendo assim, a mudança de conduta de “não-mobilização” para mobilização, proveniente dos jogos de lutas propostos nas aulas observadas, permitiu aos discentes uma “abertura” para a aprendizagem do conteúdo lutas, ou nos termos de Paulo Freire (2006), o despertar de uma curiosidade epistemológica. Quer dizer, os jogos de lutas atuaram como um “motivo gerador de sentido” (Betti, 1994) para a apropriação crítica da luta como elemento da cultura de movimento.
Conclusões
O presente trabalho teve a intenção de compreender as relações dos discentes com as lutas, e como os jogos de lutas afetaram as relações de mobilização e sentido. Em um primeiro momento, o sentido inicial de alguns discentes estava relacionado ao medo de se machucar, à ansiedade, à associação com a briga, à violência. Após a prática corporal dos jogos de lutas, os sentidos destes estudantes tenderam ao maior prazer, à diversão e à ludicidade.
Dessa forma, a ressignificação de sentidos iniciais por meio dos jogos de lutas possibilitou a mobilização (pôr-se em movimento) e atividade (participação na aula) dos estudantes. Em outros termos, os jogos de lutas representaram uma “travessia” entre o desfavorável à mobilização e a propensão de agir na atividade educativa, isto é, da “não-mobilização” para a mobilização.
Os depoimentos dos alunos evidenciaram como o caráter lúdico do jogo pode ser de grande valia no início do processo de aprendizagem das lutas, já que um dos fatores que não contribuiu com a mobilização dos alunos foi o entendimento de que luta é violenta e, por tal motivo, acompanharia sentimentos de raiva e de frustração.
Ao tratar das lutas por meio de jogos, a expectativa associada à violência foi minimizada pela diversão e a descontração. Vale destacar que os jogos de lutas não priorizaram o ensino específico de técnicas do judô, mas sim lidaram prioritariamente com algo mais importante naquele momento: a aceitação dos alunos ao conteúdo.
A abordagem lúdica (jogos de lutas e o-soto-gari), assemelha-se, por exemplo, ao caso de um indivíduo que iniciou a aprendizagem da natação, mas possui medo de se afogar. Diante disso, o professor deveria ministrar um período de adaptação e familiarização com o meio líquido antes de efetivamente ensinar as técnicas dos nados, a fim de que o sujeito, gradualmente perdesse o medo. Analogamente, o período de familiarização do aluno com as lutas ocorreu nos jogos de lutas. O que se quer dizer com isso é que, talvez, se as aulas começassem inicialmente com o o-soto-gari, poderiam causar resistência e recusa à participação, visto que o imaginário associado ao se machucar e à suposta violência presente nas lutas poderia ser confirmado.
Portanto, as características de vaivém lúdico e a sobreposição da vida cotidiana presente nos jogos atuam favoravelmente no rompimento de tensões iniciais e na dissociação entre violência e lutas, o que, em termos práticos, contribuem com a mobilização dos alunos com o conteúdo lutas.
Nesse pano de fundo, vale destacar a mediação docente na criação de uma ambiência favorável ao desenvolvimento do jogo, que proporcione ao estudante a possibilidade de arrebatamento, à mobilização, ao vaivém lúdico.
Agradecimientos
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS).
REFERÊNCIAS
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Recepción: 23 Septiembre 2019
Aprobación: 28 Mayo 2020
Publicación: 01 junio 2020