Educación Física y Ciencia, vol. 20, nº 3, e056, julio-septiembre 2018. ISSN 2314-2561
Universidad Nacional de La Plata
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
Departamento de Educación Física

Artículos

Ano internacional do esporte e educação física: o sistema onu e a pedagogia da hegemonia

Marcelo Paula de Melo

Doutor em Serviço Social (UFRJ). Coordenador do Coletivo de Estudos de Políticas Públicas de Esporte, Lazer e Educação Física (UFRJ), Brasil

Cita sugerida: Melo, M. P. (2018). Ano internacional do esporte e educação física: o sistema onu e a pedagogia da hegemonia. Educación Física y Ciencia, 20(3), e056. https://doi.org/10.24215/23142561e056

Resumo: Os organismos internacionais cumprem relevante papel pedagógico no âmbito da atual fase da sociedade capitalista e na correlação de forças entre as classes sociais. O Sistema ONU (Secretaria Geral, suas agências e Fundos) ocupa papel de grande relevo nesse processo. O conjunto de questões que marcam o projeto capitalista neoliberal incide no campo dos esportes e o Sistema ONU passou a conferir um papel de destaque aos esportes. Isso implicou na criação de uma série de programas e ações. O substrato dessas ações radica na emergência de princípios caros ao projeto neoliberal nesse campo.

Palavras-chave: ONU, Políticas de esportes, Capitalismo.

International year of sport and physical education: the un system and the pedagogy of hegemony

Abstract: International organizations have a relevant pedagogical role in the current capitalist society and the correlation of forces between social classes. The UN System (General Secretariat, its agencies and funds) play major role in this process. The set of issues that mark the neoliberal capitalist project focuses on the sports field and the UN system has to give a prominent role to sports. This resulted in the creation of a series of programs and actions. The substrate of these actions lies in the emergence of principles dear to the neoliberal project in this field.

Keywords: UN, Sports policies, Capitalism.

Primeiros passos

É possível compreender alguns aspectos das estratégias de obtenção do consenso para sedimentar à dominação burguesa a partir das indicações de alguns intelectuais orgânicos dominantes para o campo das políticas de esportes e lazer. Reconhecendo a profunda capilaridade e identificação que os esportes possuem em nosso tempo, o estudo dessas indicações pode nos fornecer relevantes pistas para compreensão dos meandros e caminhos que o projeto societário burguês dedica aos esportes. Assim, compreender as opções de governos e organismos privados na execução concreta de políticas públicas em diversas formações sociais.

O papel pedagógico da atuação política dos organismos internacionais na difusão do projeto dominante neoliberal traduz-se em receitas de políticas em diversas áreas, mediante uma série de programas, estudos, consultorias prestadas por esses intelectuais orgânicos em diversas partes do mundo. Também as publicações de estudos, anuários, documentos (supostamente técnicos) são partes dessa missão político pedagógica desses organismos.

Os organismos internacionais, sobretudo Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Sistema de Organización de Naciones Unidas (ONU), na condição de intelectuais orgânicos coletivos do conjunto da classe burguesa, buscam ser porta-vozes da pluralidade de interesses do bloco no poder, seguindo a fração hegemônica da burguesia em cada conjuntura concreta. Tais organismos internacionais buscam conferir uma perspectiva multilateral e negociada para as burguesias mundiais, por meio de um sistema de Estados nacionais. Assim, tanto as gêmeas de Bretton Woods 1 , como o sistema ONU, são parte desses novos arranjos.

É nesse quadro que esse texto irá discutir como foi ocorrendo uma aproximação dos Organismos Internacionais com o campo dos esportes em geral. Dentre o conjunto de iniciativas perpetradas pelo Sistema ONU, esse texto irá debruçar-se mais especificamente em torno da aprovação e comemoração do Ano Internacional do Esporte e Educação Física em 2005, pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Sendo parte de um movimento mais amplo do próprio Sistema ONU em relação aos campos dos esportes, educação física e lazer (Melo, 2011), a celebração e divulgação de ações do Ano Internacional do Esporte e Educação Física condensou um conjunto de elementos da lógica burguesa de ação estatal e de busca de obtenção do consenso por meio das chamadas ações de pedagogia da hegemonia (Neves, 2005; 2010).

A afirmação da atualidade do conceito de capitalismo neoliberal para expressar nosso tempo indica que seguimos em plena realização desse projeto dominante no Brasil e em grande parte do mundo. Inclusive podemos apontar que o meado da década de 2010 tem apontado uma regressão neoliberal em relação a conjuntura do início do século. Buscando explicar as faces com que o capitalismo neoliberal se apresenta, David Harvey (2008) afirma que essa nova fase do capitalismo é tomada como:

uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem–estar humano só pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidade empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio ( p. 12).

Para tal intento, é necessário um arcabouço jurídico- institucional garantido pelos Estados, malgrado toda grita acerca de sua minimização. No âmbito do bloco dominante, o neoliberalismo também foi se tornando hegemônico e capaz de unificar as diversas frações burguesas acerca de sua capacidade de ampliar sua posição de classe no bojo do confronto com as classes trabalhadoras. Assim, políticas de financeirização e mercantilização da vida, aprofundamento das políticas privatistas, diminuição da cobertura estatal em termos de bem estar social, tributação regressiva no consumo que penaliza os mais pobres e aprofundam a desigualdade social segue em marcha em diversos países da América Latina. Por isso, cravamos que o fantasma neoliberal segue assombrando e atual.

Sobre organismos internacionais

Em nosso tempo o Banco Mundial e o Sistema ONU tem atuado em diversas frentes na oferta de indicações de políticas públicas, reforma da aparelhagem estatal, privatizações de empresas estatais dentre outros temas. A partir dessas elaborações, os organismos internacionais estabelecem diálogos com os governos para obterem sua adesão aos programas de indicações que acompanham os empréstimos em diversos campos.

Um elemento relevante para o estudo do papel dos organismos internacionais implica no conhecimento de suas proposições e desdobramentos das mesmas. Outro passo é o estudo atualizado da “... forma como as condicionalidades do Banco Mundial [e também de outros organismos internacionais] são convertidas em práticas políticas” (Barreto e Leher, 2008, p. 430). Isso pode ser feito mediante estudos empíricos da execução e implementação de políticas publicamente referendadas como parte do rol de influência de determinado programa [s] de algum [ns] organismo [s] internacional [is].

Em tempos de redefinição dos rumos do projeto histórico dominante em função do estado de crise que tem marcado os anos 1990 e 2000, os intelectuais orgânicos do capital vem buscando refinar suas explicações. Isso demandou dos organismos internacionais críticas às suas próprias indicações anteriores, ainda que fazendo questão da afirmação de não terem se tratado de imposições, mas sim de indicações aos países.

O sistema ONU busca redefinir sua atuação mediante a instauração do chamado Pacto Global, proposto no Fórum Econômico Mundial de Davos em 1999 pelo então Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Anann. O Pacto Global alertava para necessidade da construção de novas bases de atuação política dos chamados líderes mundiais, entendidos pelos presentes desse Fórum como os grandíssimos empresários e chefes de governo. Como está explicitado no sítio do Pacto global na internet (ONU, 2010), seu objetivo tem sido a mobilização “... da comunidade empresarial internacional para a adoção, em suas práticas de negócios, de valores fundamentais e internacionalmente aceitos nas áreas de direitos humanos, relações de trabalho, meio ambiente e combate à corrupção refletidos em 10 princípios”. Por conta disso, tomam parte do chamado Pacto Global diversas agências das Nações Unidas como Organização Internacional do Trabalho (OIT), Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Escritório do Alto Comissariado dos Direitos Humanos (OHCHR), a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO) sob a liderança do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (ONU, 2010). Além dessas, também são listadas empresas, sindicatos, organizações não governamentais e “demais parceiros necessários para a construção de um mercado global mais inclusivo e igualitário. Hoje já são mais de 5.200 organizações signatárias articuladas por 150 redes ao redor do mundo” (Ibidem). Seguindo as informações dispostas no sítio da internet do Pacto Global, é possível afirmar que o mesmo não busca criar leis nos países, mas sim o que chama de “... um código de conduta obrigatório ou um fórum para policiar as políticas e práticas gerenciais. É uma iniciativa voluntária que procura fornecer diretrizes para a promoção do crescimento sustentável e da cidadania, através de lideranças corporativas comprometidas e inovadoras” (Ibidem). Considerando a impossibilidade, demonstrada por diversos exemplos, de um mercado inclusivo e igualitário, nota-se que se tratou expressamente de acompanhar e monitorar as ações estatais de acordo com os interesses (de classe) desses chamados líderes.

Outra iniciativa que marcou a intervenção do Sistema ONU com vistas (sempre infrutífera pela natureza da ordem do capital) a suavizar a exploração capitalista e de cobrar do conjunto da classe burguesa mundial um maior papel na obtenção do consenso dos dominados em nível global foi o estabelecimento das chamadas Metas de Desenvolvimento do Milênio no limiar dos anos 1990.

Essas metas- oito- foram o que a ONU chamou de pressuposto mínimo para a melhoria das condições de vida de significativa parcela da população mundial mediante compromissos das nações em obtê-las até o ano de 2015. As metas eram: a) erradicar a pobreza extrema e a fome; b) universalização a educação fundamental; c) promover a igualdade entre os gêneros e autonomia da mulher; d) reduzir a mortalidade infantil; e) melhorar saúde materna; f) combater doenças como HIV/AIDS, impaludismo, a malária e outras enfermidades; g) garantir a sustentabilidade ambiental; h) promover uma parceria mundial para desenvolvimento (ONU, 2005).

O que houve em comum foi a busca por reposicionar politicamente o conjunto da burguesia mundial numa conjuntura em que as bases do projeto neoliberal tinham trazido problemas à estabilização da dominação com um avanço exponencial da miséria e da desigualdade social. Não por acaso em diversos países da América Latina nos anos 2000 uma série de partidos com algum passado progressista venceram eleições, sem contar partidos com forte compromisso com os mais pobres e políticas abertamente antiimperialistas como a Venezuela, Equador e Bolívia. Isso demandava relativo sacrifício do conjunto da classe burguesa em assumir novos papéis políticos para educar o consenso dos trabalhadores.

É nesse quadro que os esportes passam a receber maior atenção no interior da atuação político-intelectual dos organismos internacionais com vistas a oferecer subsídios aos governos na implementação de políticas de esportes em conformidade com o projeto de dominação burguês para o século XXI.

Políticas de esportes e o sistema ONU: o Ano Internacional do Esporte e Educação Física

Nos anos finais do século XX e nos anos iniciais do século XXI, o conjunto da burguesia não se descuida em conferir um papel central para os esportes no seu projeto de dominação de classe, redefinindo, no entanto, suas proposições, diretrizes e práticas. Há uma ação orgânica capitaneada pelo Sistema ONU buscando estruturar suas ações no campo dos esportes e educação física com base num programa político que traz em seu bojo as determinações pedagógicas do projeto capitalista neoliberal para o século XXI. Isso tem se traduzido em uma série de formulações concretas de programas, aproximação com organismos internacionais esportivos (confederações nacionais e internacionais) bem como a efetivação de ações em alguns países membros. A participação em campanhas de Jogo Limpo (Fair Play), contra o trabalho infantil, contra uso de drogas, contra violência entre povos tem sido comum nos campos, quadras, piscinas e afins. Sempre com forte cunho moralizante e com grau de consciência política que impossibilita qualquer vinculação das campanhas com a natureza exploratória da sociedade capitalista, tal envolvimento do campo do esporte em geral é parte relevante da nova pedagogia da hegemonia burguesa na atualidade.

Apesar da aprovação da Carta Internacional de Educação Física e Esportes pela UNESCO em 1978, com indicações genéricas do esporte e educação física serem direitos de todos, somente nos anos 1990 isso se transforma em ações orgânicas e direcionadas (Melo, 2015). A UNESCO realizou num intervalo de cinco anos (1999 e 2004) duas conferências intergovernamentais (MINEPS) com a participação dos Ministros de Esportes de diversos países, chanceladas pela ONU/UNESCO e Banco Mundial. Essas conferências intergovernamentais tinham sido decenais até então- 1ª edição em 1976 e a 2ª Edição em 1988- tornando-se quinquenais na virada do século XX 2 .

Outra iniciativa foi a constituição de uma Força Tarefa diretamente pela Secretaria Geral da ONU em 2002 para apresentar o relatório “Esporte para o desenvolvimento e a paz: em direção à realização das metas do milênio” (ONU, 2003). Seu objetivo foi “... rever as atividades que envolvem o esporte dentro do sistema das Nações Unidas” (p. 5). Isso nos dá a exata dimensão de que a intervenção busca ganhar maior organicidade face às mudanças na própria pedagogia da hegemonia burguesa (Neves, 2005) que precisariam atingir o campo do esporte e educação física. Esse esforço envolveu diversas agências do sistema ONU, como por exemplo, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), UNHCR (Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados), UNICEF (Fundo de Emergência das Nações Unidas para a Infância), UNODC (Escritório das Nações Unidas para o Combate às Drogas e ao Crime), UNV (Voluntários das Nações Unidas), OMS (Organização Mundial da Saúde), OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esse grande arcabouço institucional dentro do sistema ONU indicava um novo papel político destinado aos esportes e a educação física em nível mundial. Outro elemento indicador do maior relevo que o esporte e a educação física receberam do Sistema ONU foi a criação, em 2004, de um Grupo de Internacional de Trabalho acerca da (suposta) relação entre Esporte, desenvolvimento e paz (GIT EDP).

O ano de 2005 foi estabelecido pela ONU como Ano Internacional do Esporte e Educação Física, tendo como substrato o (suposto) “reconhecimento do poder do esporte para contribuir ao desenvolvimento humano e saudável da infância e proclamou o ano de 2005 como o ano Internacional do Esporte e Educação Física” (2005, p. 2). Por conta disso, tanto a ONU como alguns governos estão decididos a “incluir os esportes em seus programas e políticas” (p. 2), e também nas ações de “ajuda externa”. Considerando que a ONU precisa influir em nível global, essas indicações pretendem que os estados membros assumam um maior protagonismo no tocante às políticas de esportes e educação física. Ao mesmo tempo, destaca a chamada cooperação internacional (“ajuda externa”) como forma de atuação, tal qual ocorre em diversos campos como educação e saúde (Melo, 2011; 2015).

Nesse documento da ONU sobre o Ano Internacional há um tópico chamado “O Poder do Esporte”. Para ONU há uma expressa contribuição do esporte e educação física para o “... crescimento econômico e social, melhoria da saúde pública e a união das diferentes comunidades” (2005, p. 3). Haveria, assim, uma contribuição e uma oportunidade, via esporte e educação física “... para que a população marginalizada por barreiras sociais, culturais ou religiosas, devido a questões de gênero, incapacidade física ou outro tipo de descriminações possam vivenciar a inclusão social e moral” (IDEM). Em ambas as citações ficam expressas apologias ao (suposto) enfrentamento de problemas sociais diversos por meio de políticas de esportes e educação física. Nossa contribuição existe, mas naufragará se não vier acompanhado de mudanças radicais na organização da sociedade.

A perspectiva da ONU ao proclamar o ano de 2005 como Ano Internacional do Esporte e Educação Física foi conclamar governos, sistema das Nações Unidas e as organizações desportivas a reconhecer o que chama de muitas possibilidades que os esportes poderiam ter na consecução de seus projetos. A ONU afirma que tal escolha do ano internacional buscou sensibilizar os governos e outros organismos supracitados a “trabalharem coletivamente e formar alianças baseadas na solidariedade e na cooperação; e a fortalecer a colaboração com os atores da sociedade civil” (ONU, 2005, p. 11) no âmbito dos esportes e da educação física. A colaboração com os chamados “atores da sociedade civil” pode ser entendida como atuação das fundações e associações (supostamente) sem fins de lucro em políticas governamentais.

Isso leva a ONU a estabelecer metas e objetivos mais específicos, para além das conhecidas Metas de Desenvolvimento do Milênio, já citadas nesse texto. Uma das perspectivas da ONU é “impulsionar uma cultura da paz, equidade social e de gênero e propiciar o diálogo e a harmonia mediante um trabalho coletivo para promover as oportunidades de solidariedade e cooperação baseadas no esporte e na educação física” (2005, p. 11). A análise precisa dos termos envolvidos na formulação anterior são elucidativos. Cultura da paz e a equidade social seriam frutos do dito trabalho coletivo, que proporcionariam com isso as oportunidades de solidariedade e de cooperação. Falta dizer quem cooperaria e quem seria solidário, bem como qual a relação que isso teria com o dito diálogo- entre quem?- e o que exatamente quer dizer a referida harmonia.

Em função disso, é apresentada como uma das metas o fortalecimento de um grande pacto cooperado entre diversas instituições como, a família, a escola, os organismos esportivos, setores governamentais, empresas, com vistas a “garantir a complementariedade e que tanto os esportes quanto a educação física estejam ao alcance de todos” (ONU, 2005, p. 11). A transformação e ampliação do acesso a esses bens culturais da humanidade seriam provido mediante esse grande pacto cooperado.

Com base na retomada do que chama de projeto de desenvolvimento como apanágio de uma suposta melhoria das condições de vida, a ONU (2005) põem os esportes como parte desse processo. A partir da aproximação com organismos do esporte (federações e confederações internacionais), seu objetivo seria “assegurar que este eficaz e variado elemento da sociedade civil se converta em uma força ativa e comprometida em um esforço mundial para o desenvolvimento” (p. 7). A isso se soma a ênfase no chamado desenvolvimento local a partir da relação com o esporte, em que haveria (supostamente) um benefício particular:

de um enfoque de associação harmônica no que concerne ao esporte para o desenvolvimento, no qual compreende o espectro completo de atores que intervém no desenvolvimento das comunidades no terreno, incluindo todos os níveis e vários setores do governo, organizações esportivas, ONGs e o setor privado. As alianças estratégicas baseadas no esporte podem se dá dentro de um marco de referência comum que proporcione um ambiente estruturado que permita a coordenação, o intercâmbio de conhecimentos e experiências e a racionalização ótima dos recursos econômicos (ONU, 2005, p. 8).

A dita “associação harmônica para o desenvolvimento”, bem como a referência às ditas alianças estratégicas com empresas, ONGs, organismos internacionais e governos, é a materialização teórica e programática dessa chamada parceria sem disputas nem antagonismos. Apenas colaboração entre iguais em concepções e projetos de mundo. A união perfeita da direita para social com a esquerda para o capital (Neves, 2010), em que ambas querem sempre o (suposto) bem comum. Claro que é peça chave do projeto neoliberal atualizar os pressupostos do fim da história, em que o conflito (de classes e de concepção de mundo) daria lugar a colaboração e parcerias.

Isso ganha maior materialidade quando a ONU busca relacionar as chamadas metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM) ao esporte. Na busca por relacionar cada MDM com o campo dos esportes, a ONU nos dá precisas indicações da vinculação desse processo com aprofundamento da dominação burguesa e consequentemente das relações sociais capitalistas. Acerca da primeira meta, a ONU (2005, p. 8) afirma que as oportunidades de desenvolvimento irão ajudar a combater a pobreza. Para isso, a “indústria dos esportes, assim como a organização de grandes eventos esportivos, gera oportunidades de emprego. O esporte proporciona destrezas indispensáveis para uma vida produtiva em sociedade” (p. 8). O retrato nítido das relações sociais capitalistas está expresso na mostra de que alguns símbolos e souvenires oficiais da Copa do Mundo da África do Sul foram produzidos por empresas chinesas, inclusive com força de trabalho infantil. O caráter mais anedótico, apesar de triste, é que uma das empresas responsáveis pela importação de tais produtos pertence ao líder do partido do Governo sul-africano, “e com benção da FIFA”, afirma ironicamente Jorge Rodrigues (2010), autor da reportagem. Isso tudo no contexto de uma taxa de quase 25% de desemprego na África do Sul, como mostram os dados trazidos por Rodrigues (2010). Mais uma forte prova que indústria do esporte (ou mesmo qualquer ramo capitalista) só entende e persegue a lógica do lucro. Qualquer compromisso ético será subjugado a esse princípio.

Para além da vinculação da superação da pobreza com o incremento do funcionamento de um ramo capitalista- indústria dos esportes, no que tange à preparação de materiais esportivos e de tudo que se relaciona ao espetáculo esportivo-, há expressa relação com a expansão dos megaeventos esportivos para periferia do sistema capitalista no século XXI (China, 2008, África do Sul, 2010, Brasil 2014 e 2016). Não obstante, há o alerta da relação subjetiva do esporte como educador coletivo para o que chama de vida produtiva em sociedade.

No tocante à meta de universalização da educação fundamental- no documento chamada de primária- um dos papéis atribuídos à educação física e aos esportes é de tornar o sistema educativo “mais atrativo” para jovens e crianças. Além disso, também há o reforço de que esportes e a educação física “promovem os valores e as habilidades positivas que exercem influência rápida, mas duradoura nos jovens” (ONU, 2005, p. 8).

A terceira meta de desenvolvimento do milênio relacionada à igualdade de gênero e de promoção da autonomia da mulher, quando se aproxima do esporte e educação física refere-se às oportunidades desiguais de gênero de acesso às práticas corporais. Para a ONU, “envolver as meninas em atividades esportivas como os meninos pode ajudar-lhes a superar os prejuízos que contribuem para vulnerabilidade das mulheres e das meninas em uma determinada sociedade” (2005, p. 9). Isso pode ser relacionado às 4ª e 5ª metas de “reduzir a mortalidade infantil” e “melhorar a saúde materna”. O esporte e a educação física poderiam ser um “... meio efetivo para garantir a mulher um estilo de vida saudável, assim como para transmitir mensagens importantes relacionadas à autonomia das mulheres e de seu acesso à educação” (p. 9). Atribuir a alta mortalidade infantil e problemas na saúde materna à estilos de vida é uma forma de despolitizar qualquer debate das condições de vida e problemas objetivos e concretos decorrentes da pobreza e desigualdade social.

Por fim, mas não menos importante, a 8ª MDM- “a promoção de uma aliança mundial para o desenvolvimento”- significa o concretização no campo dos esportes e da educação física da unificação da Direta para o Social e da esquerda para o capital (NEVES, 2010). Para a ONU (2005), o esporte permitiria diversas

oportunidades para a criação de alianças para o desenvolvimento e pode[m] ser utilizado[s] como ferramenta[s] para construir e promover associações entre as nações desenvolvidas e as vias de desenvolvimento para que trabalhem em prol de obter os objetivos de desenvolvimento do milênio (p. 9).

Para o Sistema ONU, os esportes e a educação física desempenham um “papel importante do desenvolvimento humano” (2005, p. 9), sobretudo por proporcionarem um “foro para aprender habilidades tais como a disciplina, a confiança, a liderança e transmitir princípios fundamentais que são importantes em uma democracia, tais como tolerância, a cooperação e o respeito”. Não por acaso, essas justificativas estão presentes no tópico em que se dedicam a debater o porquê de “Um ano internacional para esporte e Educação Física?” (p. 10).

Aqui encontramos os valores e os princípios que a ONU defende serem necessários numa “democracia”. Disciplina, confiança, liderança, tolerância, cooperação e respeito são realçados a partir do esporte. O papel conformador de sociabilidades num quadro de crise sistêmica e mais a vinculação a uma suposta democracia é revelador do que o Esporte e a educação física terem sido temas de um Ano Internacional pelo sistema ONU.

Ainda no documento acerca do Ano Internacional do Esporte e Educação Física há uma sessão intitulada “Resultados Esperados”. Dentre os resultados, um é extremamente relevante a nosso propósito. A ONU (2005) espera que

... o setor privado vinculado ao esporte (indústria manufatureira de artigos esportivos) e as federações esportivas internacionais se interessem cada vez em assuntos relacionados ao desenvolvimento humano e a construção da paz. Isto se pode obter mediante o estabelecimento de associações entre os setores públicos e o privado com as organizações do Sistema das Nações Unidas e um maior intercâmbio de informações em todo nível (p. 11).

Fica nítida a busca por criar um grande consenso no campo das ações esportivas da necessidade do que chamam de parcerias com os empresários na execução das políticas de esporte. O papel da ONU e de suas agências parece ser de aglutinadores de esforços para a consecução desse projeto. Longe de tratar de alguma cobrança de posicionamento da ONU ou mesmo afirmar que essa posição seria teoricamente equivocada, até porque do ponto de vista burguês isso implica numa posição extremamente atual, explicita-se assim qual é a perspectiva de atuação burguesa para os anos 2000 no campo dos esportes.

Para que tal papel político possa ser desempenhado com eficácia e para que reverbere na sociedade, a ONU alerta, via recomendação da Secretaria Geral, que os “Estados membros” sejam convidados “... a estabelecerem comitês nacionais e pontos focais com responsabilidade para fomentar as atividades relacionadas com a observância do Ano internacional do Esporte e Educação Física” (2005, p. 16). Para tais comitês nacionais as tarefas seriam:

Para que tais formulações da ONU se convertam em ações concretas nos diversos cantos do mundo, há a recomendação expressa da Secretaria Geral de criação dos comitês nacionais. O que isso indica? Temos aqui uma manifestação de conferir organicidade e materialidade as formulações vinculadas ao Ano Internacional da Educação Física e Esporte. A criação de página na WEB, promoção de eventos, conferências, criação de prêmios indicam uma busca por espraiar tal concepção de mundo em diversas esferas de várias formações sociais. Essas recomendações teriam como alvo os governos dos Estados membros.

Mas a ONU (2005), como uma das instâncias de coordenação do projeto burguês em cada conjuntura específica, não deixa de traçar diretrizes e recomendações para a atuação das burguesias nacionais no espaço de cada Estado-Nação. No caso do esporte e da educação física isso não é diferente. A partir do reconhecimento de que o setor privado do “esporte está entre os setores mais prósperos e dinâmicos do mundo” (p. 16), o documento da ONU acerca do Ano Internacional do Esporte e Educação Física também traz recomendações acerca da atuação dos setores empresariais de atuação nesse campo. Para a ONU, “as campanhas do setor privado podem: A) apoiar a criação de alianças inovadoras para promover o desenvolvimento, a educação, a saúde e a paz através do esporte e da educação física” (p. 16). Ainda que não haja novidades nos tópicos de atuação, o elemento relevante aqui é atuação concreta dos empresários nesse campo, aproveitando e disseminando o projeto da responsabilidade social empresarial. Além disso, a ação política do empresariado na divulgação do Ano Internacional de Esporte e Educação Física é pensada, tanto em cada empresa, como também mediante a ação de seus organismos representativos. Outra frente relevante dessa ação política é a indicação da ONU de que empresários tomem parte “dos comitês nacionais para o Ano Internacional de esporte e educação física-2005” (2005, p. 16).

Sendo o Ano Internacional uma espécie marco inicial da atuação do Escritório da ONU para o Esporte- UNOSDP-, é possível ver que suas ações seguiram no sentido de conferir um caráter mais orgânico à atuação do conjunto da ONU nesse campo. Tanto que o tópico “Plano de Ação da Secretaria Geral da ONU para Esporte e Educação Física”, constata que o primeiro desafio seria a necessidade do “Esporte para Desenvolvimento e Paz ser explicitamente incorporado nos planos e políticas nacionais e internacionais de desenvolvimento, contando com a cooperação e coordenação de todos os parceiros envolvidos” (ONU, 2006, p. 16).

Considerações finais

Num momento em que o suposto fim do neoliberalismo é cantado e decantado aos quatro ventos, faz-se necessário discutir não somente sua permanência, mas aprofundamento com nova roupagem. Como alerta Harvey (2008) só é possível considerar que estamos diante do fim do neoliberalismo caso tenhamos uma visão extremamente restritiva acerca do que venha ser tal fenômeno. É preciso tomar o neoliberalismo como um projeto político do conjunto da classe burguesa, dirigida por sua fração financeira, passível não somente de restaurar o poder dessa classe, mas garantir a hegemonia frente às classes dominadas, e convencer outras frações da classe dominante. Nesse sentido, é preciso compreender os mecanismos de luta política que executam os intelectuais orgânicos individuais e coletivos do capital no atual momento histórico.

O conjunto dessas proposições do Sistema ONU acerca dos esportes e Educação Física clarifica uma busca orgânica de trazer essas áreas para as hostes de uma atuação dos diversos Estados-membros e também de muitos organismos na sociedade sob as bases de seu projeto societário. A partir da ocupação do pensamento de tipo neoliberal no bojo de diversos organismos e intelectuais orgânicos do capital e mesmo do trabalho, defendendo aspectos variados desse projeto político, Harvey (2008) afirma que isso tem afetado os modos de pensamento, sobretudo, quanto às maneiras cotidianas de interpretar, viver e compreender o mundo.

Nesse sentido, é preciso compreender os mecanismos de luta política que executam os intelectuais orgânicos individuais e coletivos burgueses no atual momento histórico. Como afirmam Neves e Martins (2010):

... cumpre ressaltar que os intelectuais da nova pedagogia da hegemonia são pessoas e organizações que têm por atribuição específica a formulação, adaptação e disseminação, em diferentes linguagens, das ideias que fundamentam a nova concepção de mundo e práticas político-ideológicas da burguesia mundial. Eles são também os responsáveis pela organização de atividades que visam sedimentar em todo o tecido social um novo senso comum em torno de um novo padrão de sociabilidade para o século XXI (p. 25).

Como aponta Antonio Gramsci (2001), o debate no campo das ideias possui implicações concretas. Tomando o conceito de ideologia de Gramsci, não como uma interpretação falseada da realidade, em uma acepção negativa, mas sim como uma concepção de mundo orientadora de ações políticas concretas, o enfrentamento às concepções de mundo vai muito além de buscar mostrar um suposto equívoco ou erro dessas. Mais do que isso, trata-se de enfrentá-las- e nesse trabalho isso se relaciona com o papel do esporte na dominação de classe no atual contexto, tendo em vista sua ligação com o embate político entre as classes sociais fundamentais na sociedade capitalista em busca da realização de seus interesses históricos. Como afirma o autor dos Cadernos do Cárcere:

... as ideologias não são de modo algum arbitrárias; são fatos históricos reais, que devem ser combatidos e revelados em sua natureza de instrumentos de domínio, não por razões de moralidade etc., mas precisamente por razões de lutas políticas: para tornar os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar uma outra, como momento necessário da subversão da práxis (2001, p. 387/8).

No caso das políticas de Esportes e de Educação Física isso gerou uma espécie de cartilha e linguagem comum. Temas como inclusão social, inserção social, coesão social, disciplina, obediência a normas, cultura da paz, resolução de conflitos via esportes passam a ser incorporados em documentos de diversos governos e organismos privados sem demandarem maiores explicações. Tomados como autoexplicativos, passam a compor o rol de conceitos supostamente científicos que legitimam a ordem societária burguesa e seus modus operandi.

Assim, a presença dos esportes nas ações políticas de alguns intelectuais orgânicos das classes dominantes traduz-se em tentativas de espraiar elementos constitutivos do projeto dominante. O desnudamento dessas concepções pode abrir margem para enfrentamentos teóricos que explicitem seu papel na conservação da hegemonia do bloco no poder.

Referências

Barreto, R.G & Leher, R. (2008). Do Discurso e das Condicionalidades do Banco Mundial: a educação superior “emerge” terciária. IN: Revista Brasileira de Educação, 13(39), 423- 436.

Gramsci, A. (2001). Caderno 11 (1932-1933). Cadernos do cárcere Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1, 81-226.

Harvey, D. (2008) Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola.

Melo, M.P. (2015) de. Os primórdios do esporte no sistema ONU: I MINEPS (1976) e Carta Internacional de Educação Física (1978). Educación Física y Ciencia, 17 (1), p. 1-11.

Melo, M.P. (2011) Esporte e dominação burguesa no século XXI: a agenda dos Organismos Internacionais e sua incidência nas políticas de esportes no Brasil de hoje. (Tese Doutorado em Serviço Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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Notas

1 Menção ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional. O termo gêmeas de Bretton Woods deve-se ao fato de terem surgidos da famosa conferência na cidade estadunidense de mesmo nome em 1944.
2 Somente em maio de 2013 foi realizada a 5ª Edição da Mineps em Berlim (Alemanha).

Recepción: 15 diciembre 2016

Aprobación: 15 febrero 2018

Publicación: 27 julio 2018

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