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Resumo
Esta
investigação teve como objetivo reconhecer semelhanças
e diferenças na configuração de casos de
professoras de Educação Física caracterizados de
abandono do trabalho docente. Particularmente, buscou compreender
como os membros da comunidade escolar, em especial os gestores,
enxergam (se é que enxergam) a prática docente de duas
professoras com proposições de ensino similares na sala
de aula, mas com um envolvimento diferenciado com a instituição.
O texto foi construído com base em dois estudos de caso
desenvolvidos no ano de 2010 em escolas públicas de municípios
da região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Os dados
foram coletados com base em entrevistas semiestruturadas e diários
de campo. Os resultados indicam que o abandono do trabalho docente é
percebido pelos membros da comunidade escolar apenas no caso em que a
professora renuncia a qualquer tipo de proposição em
suas aulas e não se mostra solícita a outras
necessidades da escola, e não é notado (ou explicitado)
quando a atuação docente, ainda que não pautada
pelo ensino dos conteúdos da disciplina escolar, não
altera as rotinas escolares e dá conta minimamente da
tradição. Os conhecimentos tratados (ou não) nas
aulas de Educação Física são invisíveis
ao olhar dos gestores escolares.
Palavras-chave: atuações
docentes; desinvestimento pedagógico; educação
física; estudo de casos múltiplos; educação
básica.
Abstract
This
research aimed to recognize similarities and differences in the
configuration of cases of teachers of Physical Education
characterized by dereliction of teaching. This study tried to
understand how members of the school community, especially managers,
see (if they do) the teaching practices of two teachers with similar
teaching propositions in the classroom, but with a different
engagement with the institution.The text was constructed based on
two case studies developed in 2010 in public schools in counties of
northeastern states of Rio Grande do Sul.Data were collected based
on semi-structured interviews and field diaries.The results
indicate that the neglect of teaching is perceived by members of the
school community only when the teacher rejects any proposition in
class and does not respond to other needs of the school, and his
action is not acknowledged. The teacher is not guided by the contents
of the higher education of the school discipline, and still does not
change the school routines and minimally contemplates the tradition.
The knowledge addressed (or not) in Physical Education classes
is invisible to the eyes of school administrators.
Keywords:
teaching practices, educational disinvestment, Physical Education;
study of multiple cases; basic education.
Pelo menos desde o início do século 20 a Educação
Física, então chamada de “Ginástica”,
faz parte do cenário escolar brasileiro. Durante um bom tempo,
especialmente no apogeu do movimento ginástico, não era
possível pensar a educação escolar sem se pensar
em um tempo e um espaço específico para a educação
do corpo (orgânico). “Exercitar para...” a melhoria
da raça, o disciplinamento das condutas, a ampliação
da aptidão esportiva, a melhoria da saúde dos alunos
funcionou (e em muitas escolas ainda funciona) como a principal
justificativa para a continuação do espaço e do
tempo destinado às aulas de Educação Física
desde sua escolarização. É possível
afirmar que têm acontecido mudanças na intencionalidade
do movimento em cada período, mas não o papel
curricular atribuído à Educação Física
na escola (González & Fensterseifer, 2009; González
& Fraga, 2012).
Por
volta do início da década de 1980, em meio à
ampla mobilização social e política em prol da
redemocratização do país, surge um movimento que
pretendia criar as condições para uma “virada
cultural” na forma de entender a Educação Física
na escola. O “movimento renovador” da Educação
Física, como anos mais tarde ficou conhecido, reunia uma série
de pensadores que ambicionava “livrá-la” da
condição de mera atividade pedagógica. A maior
dificuldade do movimento era fazer crer que o desenvolvimento da
aptidão física em escolares, pressuposto firmemente
legitimado no Decreto n° 69.450/71, publicado no auge da ditadura
militar (1971), não deveria ser a finalidade principal das
aulas de Educação Física. Não havia
contestação direta aos possíveis benefícios
da aptidão física para a população de um
modo geral, pois esta não era em si um problema para o
“movimento renovador”, e sim à adequação
de uma proposta desta natureza em uma instituição que
tem como propósito fundamental transmitir às futuras
gerações parte do legado científico e cultural
acumulado pela humanidade (González & Fraga, 2012).
A
“virada cultural” posta em marcha pelo movimento
renovador se sustenta no pressuposto de que os corpos em movimento
não podem ser compreendidos apenas pela “mecânica”
da atividade física, pois eles expressam os significados
partilhados por uma dada sociedade em um dado recorte temporal. Nesta
perspectiva, não tem mais sentido trabalhar aula após
aula sob a insígnia do “exercitar para...”, e sim
tratar de tematizar a “cultura corporal de movimento”
como objeto de estudo da Educação Física.
A
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB n° 9394/96) em 1996 garantiu a Educação
Física à condição de componente
curricular da Educação Básica. Um ano depois, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil,1997), inspirados nos
princípios do movimento renovador, consolidou a cultura
corporal de movimento (cultural corporal, cultura de movimento,
cultura de movimento corporal, sobre as diferentes denominações
ver Bracht, 2005) como objeto de estudo central da disciplina de
Educação Física na Educação
Básica. Tal condição não foi alcançada
sem polêmicas, pelo contrário, houve intensas disputas
políticas antes, durante e depois da promulgação
da LDB de 1996 e da publicação dos PCN, alimentadas
tanto pelos pioneiros do “movimento renovador”, que
defendiam as conquistas alcançadas, quanto pelos herdeiros do
“exercitar para...” que pretendiam um “retorno”
a uma Educação Física pautada pelo cuidado com o
organismo e a promoção da prática esportiva
(Castellani Filho, 1998; González & Fensterseifer, 2009;
González & Fraga, 2012).
Apesar
de já ter se passado mais de vinte anos da materialização
das primeiras propostas nesta linha (Coletivo de Autores, 1992), e
mais de quinze anos do lançamento da primeira versão
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997), não
se tem revelado fácil romper com a lógica que sustentou
o trabalho docente em Educação Física por quase
um século. O atual contexto escolar ainda revela que o caráter
tradicional da Educação Física é muito
presente, ou o que é ainda pior, o abandono do trabalho
docente.
O
abandono do trabalho docente no contexto desta pesquisa é
entendido como uma forma de atuação profissional que
recebe denominações do tipo rola
bola,
largobol,
aula
matada.
Em linhas gerais, trata-se da atuação docente
caracterizada por não apresentar grandes pretensões com
suas práticas; talvez a pretensão maior seja a de
ocupar seus alunos com alguma atividade. Com frequência, o
professor com este perfil converte-se em simples administrador de
material didático, atividade que não exigiria, em
princípio, formação superior. Outras vezes,
assume uma postura de compensador do tédio dos alunos
produzido nas outras disciplinas (como Matemática, Português
etc.) (González & Fensterseifer, 2006, Machado et al.,
2010).
Os
estudos (González & Fensterseifer, 2006; Faria et al.,
2010; Machado et al., 2010; Fensterseifer & Silva, 2011; Silva &
Bracht, 2012; Pich, Schaeffer & Carvalho, 2013) mostram que esta
atuação docente é atravessada por diversas
dimensões em que se combinam elementos tanto macros
(transformações na disciplina, política
educacional), como micros (organização escolar, relação
com ambiente escolar) do universo social. Nessa linha, buscamos
compreender o entrelaçamento das diferentes dimensões
que concorrem para originar/impedir, favorecer/inibir, atuações
docentes caracterizadas pelo abandono do trabalho docente de
professores de Educação Física em escolas
públicas. Quatro dimensões relacionadas com a atuação
docente, assim como as conexões entre estas, recebem especial
atenção em nossos projetos: (a) as implicações
do processo de transformação da área, (b) as
condições objetivas de trabalho, (c) a cultura escolar
e sua relação com a disciplina; e (d) as disposições
– e constituição das mesmas - que operam na
atuação docente dos professores de Educação
Física e a atualização das mesmas nos contextos
escolares. Nesse sentido, a finalidade desse estudo se centrou em
compreender como o ambiente escolar, particularmente o olhar
da gestão,
enxerga a prática docente de duas professoras com proposições
de ensino similares na sala de aula, mas com um envolvimento
diferenciado com a instituição.
Para
o desenvolvimento deste trabalho foram utilizados os dados de dois
casos estudados no contexto do Grupo de Pesquisa Paidotribas durante o ano de 2010. Os casos foram escolhidos por serem
professoras experientes e, em nossa perspectiva, com atuações
muito semelhantes, caracterizadas pelo abandono do trabalho docente,
mas, simultaneamente, com marcadas diferenças no prestigio
social e profissional de ambas em seus respectivos contextos de
trabalho.
A
pesquisa se caracteriza como um estudo de casos múltiplos de
base etnográfica (Yin, 2001; Molina Neto & Triviños,
1999). Em ambos os estudos, foram realizadas observações
sistemáticas de parte das aulas ministradas pelas professoras
(registradas em diários de campo) durante um semestre e
entrevistas com os sujeitos pesquisados, professores de outras áreas,
colegas das escolas, gestores e diferentes membros da comunidade
escolar. No que se refere às observações, foram
enfatizados aspectos didáticos (formas de organizar e ensinar
os conteúdos), pedagógicos (relação
estabelecida com os alunos) e administrativos (relação
com a gestão escolar). As entrevistas aos membros da
comunidade escolar foram semiestruturadas, com base num questionário
com perguntas referentes ao lugar da disciplina na escola e a atuação
profissional das professoras.
A comparação dos casos estudados indicaria tratar-se de situações muito diferentes. No entanto, em nossa perspectiva, trata-se de dois casos de abandono do trabalho docente, com contornos diferentes no largo espectro de possibilidades que esta atividade pedagógica pode assumir quando o professor não orienta sua atuação pela ideia do ensino que orienta uma disciplina escolar (González & Fensterseifer, 2006, 2010). Para poder pontuar as semelhanças e diferenças destes casos, optamos por fazer uma descrição dos casos pesquisados seguida da comparação de dois aspectos específicos. Os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade das professoras investigadas.
A professora Joana
Joana, 48 anos de idade, casada, sem filhos. Formada em uma universidade da região de forte orientação “tradicional-esportiva” (Betti & Betti, 1996). Vinte e um anos de magistério, os últimos 16 (dezesseis) apenas na escola estadual onde foi realizada a pesquisa. Sempre trabalhou 40 horas.
Foram acompanhadas em torno de 20 aulas de diferentes turmas e níveis de escolaridades. A partir das observações realizadas percebemos que a dinâmica da aula de Educação Física repete-se sem muitas alterações. Exceto nas primeiras aulas observadas, em que a professora realizou algumas atividades em sala de aula, foi possível constatar que o tempo/espaço dedicado à “disciplina” é, maioritariamente, constituído por momentos em que alguns alunos praticam esportes. Indícios em relação à descrição supracitada aparecem no seguinte fragmento do diário de campo:
“A primeira aula observada foi no turno da tarde com uma turma de 5° serie, na qual havia 16 alunos, a professora realizou atividades em sala de aula. No inicio Joana solicitou a entrega dos trabalhos sobre brincadeiras antigas praticadas pelos avôs, os quais, segundo a mesma havia sido encaminhado a quase dois meses atrás. Assim como confecções de objetos utilizados nas práticas das brincadeiras, como petecas e saquinhos de “cinco marias”. Neste dia a grande maioria dos alunos entregou o trabalho teórico, porém os objetos para compartilharem das práticas das brincadeiras, somente quatro alunos trouxeram. A professora se mostrou desanimada com a situação. Ela ressaltou o longo período de quase dois meses, que os alunos tiveram para elaborar seus objetos para as práticas na aula de Educação Física. Como forma de mostrar sua insatisfação, a professora manteve os alunos em sala de aula, conversando com os mesmos durante um bom tempo, após isto iniciaram as vivencias das atividades ali mesmo.Neste período em que ficaram na sala, alguns alunos perguntavam se teriam que permanecer lá, os dois períodos da Educação Física, ao que professora respondeu que sim. Porém no segundo período, os alunos puderam se deslocar para o ginásio de esportes, onde inicialmente continuaram desenvolveram as brincadeiras que correspondiam à unidade didática e depois foram liberados para jogarem futsal, “bola” na expressão dos alunos.” (Fragmento do diário de campo, 13 junho. 2010).
Fora
uma que outra aula, como a descrita, geralmente, os alunos eram
encaminhados pela professora até o local das práticas
(ginásio ou quadra aberta), onde escolhiam os times e passavam
a jogar até o final do período. Os esportes mais
vivenciados eram o futsal, handebol e vôlei, prevalecendo o
primeiro sobre os outros. A professora ficava presente na quadra,
juntamente com os alunos que não praticavam. Nas aulas
observadas, não foi visto intervenções da
professora em relação às práticas
realizadas pelos estudantes. Basicamente a professora assistia o que
acontecei na quadra sem estabelecer maior interlocução.
O
contexto escolar ao qual Joana estava assignada foi descrito por como
hostil a sua pessoa e a disciplina. No relato sobre o entorno
institucional, a falta de apoio financeiro para a compra do material
didático e a redução sistemática do
número de horas da disciplina ao longo dos anos são
apresentados como as principais evidências dessa situação.
Em conversas com a professora surgiram questões sobre o mau
relacionamento dela e a diretora, o qual, segundo Joana, teria origem
em diferenças político-partidárias.Na
interpretação da professora, em decorrência dessa
contenda muitas vezes os pedidos feitos por ela, como material, são
recusados, com alegações de que existem outras
prioridades de investimentos no colégio. Num fragmento da
entrevista aparecem vários dos elementos comentados:
“Eu sei que não dou a aula que meus alunos merecem, mas sei que não vai mudar enquanto continuar com esta direção, não tenho material, nem apoio. Se eu for reclamar tenho que aguentar os gritos dela. Não compensa tanto estresse, assim gasto meu salário em antidepressivo, não quer me incomodar. Mas quando trocar de direção vou mudar minhas aulas.”
Ao
conversar com a diretora, tomamos conhecimento de outra versão
em relação a estas diferenças. Segundo a
gestora, o relacionamento entre direção e professores
não apresenta grandes problemas. Em sua fala, salienta que tem
consciência de que algumas pessoas não gostam dela,
porém nada relevante. Ela afirma: “não tem nenhum
professor aqui, que eu tenha, graças a Deus, dificuldades.
Claro que tem gente que não gosta de mim, normal! Mais assim,
problemas assim maiores não existem [...]”.
Quanto
à aquisição de materiais pedidos por Joana, a
diretora deixa claro que, realmente, se o pedido da professora
equivale a dez bolas, quando consegue comprar quatro é muito.
Porém, não deixa de comprar ao menos o que pode. Outro
ponto importante, observado durante a entrevista realizada com a
diretora da escola, é que a mesma, deixou claro que não
faz questão de investir verbas a mais nos materiais para a
disciplina de Educação Física, pelo fato de não
ver sua utilização. Pois, segundo ela, com base em seu
tempo de trabalho nesta instituição, a mais de 30 anos,
o que sempre prevaleceu nas aulas de Educação Física,
foi o futsal, sendo assim não há necessidade de outros
materiais.
Neste
contexto, ainda se esforçando para não fazerem críticas
diretas ao trabalho de Joana, a diretora e outros atores escolares
deixam escapar manifestações sobre a insatisfação
que produzida pela atuação da professora. O não
envolvimento da Joana com a escola/aluno é apontado em
diversas oportunidades a partir de uma ideia de “problema”
atitudinal (“um desânimo!”) da docente com a
instituição e os colegas. No entanto, nas diferentes
conversar, não aparece uma “queixa” ou “reclamo”
dos gestores em relação aos conteúdos não
ensinados nas aulas de Educação Física.
A professora Maria
Maria,
35 anos, casada, um filho. Ela concluiu a graduação em
Educação Física em 1999, noutra universidade da
região com uma perspectiva diferente de formação
profissional. Essa instituição nasceno bojo do
movimento renovador da Educação Física. Em 2007
começou uma nova graduação, na área da
saúde na mesma universidade. Ela estava, na época da
pesquisa, há dez anos no exercício da docência e
trabalhava 30 horas semanais. Além de seu envolvimento com a
nova graduação e com a família, Maria dividia
seu tempo auxiliando seus pais na administração de um
pequeno comércio e a participação em outras
atividades culturais.
Na
escola onde foram desenvolvidas as observações,
trabalhava há seis anos com 30 horas semanais, sendo apenas
uma hora destinada para estudo e planejamento. Além das aulas
regulares desenvolvia um projeto especial de dança na escola
com um grupo de alunos voluntários e gerenciava a merenda da
escola.
Foram
acompanhadas em torno de 20 aulas de diferentes turmas de ensino
médio. Em linhas gerais, as aulas da professora acabaram por
se mostrar, de certa forma, presas a certo modus
operandi bastante
estável. Os alunos e a docente pareciam cumprir um roteiro
tácito do encontro pedagógico: sabiam o que iria
acontecer, então, sem questionar a rotina, cumpriam seus
papeis. Apenas em um dia de chuva a aula iniciou na sala; o resto
começou em frente à escola (pátio), com os
alunos conversando e esperando a professora. O automatismo da rotina levava os alunos a nem mesmo esperar que a professora
terminasse a chamada para se deslocarem à quadra, como se não
esperassem nada de novo. Sabiam que a professora pediria que eles se
dirigissem à quadra posteriormente, como descrito no seguinte
fragmento do diário de campo:
“A aula tem inicio na frente da escola (pátio). A professora começa a aula fazendo a chamada (33 alunos, 17 meninas, 16 meninos), e aproveita para conferir se os alunos estão de uniforme (a cada aluno chamado, a professora confere o uniforme), os alunos se aglomeram em torno da professora esperando ser chamados. Após ouvir o seu nome a maioria dos alunos se dirige em grupos para a quadra. Ao final da chamada, a professora convoca alunos (dois alunos que ficaram até o final da chamada) que ficaram em torno dela para que ajudem a pegar o material de vôlei (os alunos não fazem objeção nenhuma), enquanto o resto se dirige à quadra Os alunos não fazem objeção alguma a caminhar em volta da quadra, mesmo sendo um dia muito quente. A professora não estipula um número de voltas para os alunos, mas os mesmos não questionam isso. Os alunos conversam sobre assuntos aleatórios sem reclamar do calor ou da atividade que a professora propôs. Quando a professora termina de arrumar a rede em conjunto dos dois meninos, reúne os alunos na sombra da quadra (que é pequena, apenas uma árvore de uva japonesa faz a sombra). A professora chama a atenção dos alunos quanto à obediência ao sinal do apito, solicitando que os alunos respeitem o sinal do mesmo. A professora posteriormente realiza alongamentos de membros superiores e inferiores, logo após separa a turma em cinco equipes mistas (meninos e meninas), e posteriormente dá uma bola para cada equipe, para que os mesmos treinem o toque e a manchete. Durante o alongamento, alguns alunos conversam, mas em tom de voz baixo, a professora parece não se incomodar com isso, no máximo um olhar de desaprovação. Na divisão das equipes, os alunos não questionam nem se exaltam pelas escolhas da professora. Apenas se dirigem para os grupos indicados, que se situam em diversos pontos da quadra (a maioria deles no sol, somente um grupo fica na sombra). Após receberem as bolas, os alunos começam a atividade proposta pela professora; enquanto isso os alunos aproveitam para conversar um pouco. Após 17 minutos, a professora convoca alunos de duas equipes para o jogo formal, enquanto os demais alunos deveriam continuar com a prática dos exercícios. Cinco alunos aproveitam a mudança da atividade e sentam na sombra, enquanto os demais continuam o trabalho dado pela professora. Ao sentarem na sombra, os alunos começam a conversar. A professora não mostra preocupação com a indiferença de que alguns estudantes realizam o trabalho proposto ou pelo grupo que está sentado à sombra. Ela se concentra em arbitrar o jogo formal. O jogo, que dura em torno de 16 minutos, transcorre com tranquilidade, sem exaltação por parte dos alunos. Conforme os times vão jogando, as equipes vão se sentando à sombra, posteriormente. A professora não propõe ou cobra nenhuma prática para estes alunos. O foco principal da professora é unicamente os alunos em quadra. Os demais agem com uma normalidade típica dentro da aula, como se não fosse a primeira vez que o estivessem fazendo, e a atitude da professora não é diferente. Ao final do último jogo, a docente pede para que três alunos retirem o material de vôlei. Alguns minutos depois, a professora retorna com uma bola de futsal, os meninos então jogam até o término da aula, enquanto a professora conversa com os demais alunos, a maioria meninas, na sombra da escola (longe da quadra). Algum tempo depois (faltando 15 minutos para o término da aula), a professora libera as meninas, que sem questionamento nenhum vão embora. Os meninos permanecem até às 17h30min jogando futsal. Ao final, a professora recolhe a bola e os meninos vão embora.” (Fragmento do diário de campo, 26 out. 2010).
Em
nenhuma de suas aulas a professora fez menção ao
trabalho realizado em encontros anteriores ou contextualizou o
trabalho que seria desenvolvido no dia. Apenas, em alguns momentos,
enfatizava a importância de praticar os exercícios
propostos. Também não mencionava ou solicitava
trabalhos teóricos.
A
exercitação dos fundamentos da modalidade não
parecia ganhar centralidade no trabalho da professora. Na maioria das
aulas observadas, a docente solicitava aos alunos, divididos em
grupos, que realizassem alguns exercícios (como o toque e a
manchete, quase sempre). Mas, poucos minutos depois, particularmente,
quando o jogo começava, os alunos paravam de praticar e a
professora não investia energia para mantê-los
envolvidos na tarefa (o que passa a impressão de uma
importância relativa dessas atividades), como aparece no
fragmento do diário de campo anterior e no próximo.
“[...] Às 14h40min, os alunos retornam [após realizarem algumas voltas ao quarteirão caminhado] para a escola. A professora requisita quatro alunos para pegar o material de vôlei (postes, rede e as bolas) e ela vai até a sala de materiais e abre para que os alunos peguem-nos. Os mesmos quatro alunos que trouxeram os materiais montam a rede de vôlei, enquanto o restante dos alunos forma grupos e “treina” o toque e a manchete. Após estar armada a rede, a professora seleciona doze pessoas para o jogo formal (três meninos e três meninas para cada time), enquanto o restante dos alunos continua o exercício. A professora arbitra o jogo. Não se passa muito tempo e os toques e as manchetes dos alunos que não estão no jogo formal são trocados pela conversa e pela sombra. Às 15h04min o jogo termina, então a professora seleciona os que estão sentados na sombra, conversando, para o jogo formal [...].”(Fragmento do diário de campo, 1º out. 2010).
Em todas as aulas, os últimos 20minutos eram ocupados com jogos de futsal, apesar de o conteúdo da aula ser voleibol. Durante as aulas, os meninos não exercem pressão alguma sobre a professora no sentido de praticarem o futsal, pois sabem que é uma prática garantida que não necessita ser demandada. Durante o jogo, os meninos organizam-se por turma para jogar (Turma 101 vs. Turma 102), e dentro de cada grupo vão revezando. As meninas geralmente não jogam, ficam conversando com a professora na sombra do prédio da escola. No entanto, numa das aulas, elas manifestaram o desejo de jogar, e a docente atendeu imediatamente ao pedido. Comunicou a decisão aos meninos, que cederam o espaço sem maiores reclamações. Ficou claro que a professora continuava sendo a dona da aula.
“[...] Ao final, a professora pede para o time que perdeu o jogo de vôlei que retire a rede e que os meninos montem times de futsal. A professora e mais dois alunos retornam cinco minutos depois com jalecos e uma bola de futsal. Dois times de futsal masculino jogam, enquanto as meninas conversam com a professora na sombra, sentadas. O jogo dura em torno de 15 minutos. As meninas reivindicam à professora o direito de jogar, sendo prontamente atendidas pela professora. Os meninos, com alguns choramingos, deixam a quadra, e as meninas passam a jogar. As restantes retornam para dentro da escola enquanto sete meninos adentram a escola, também. As meninas jogam futsal até o encerrar da aula, enquanto a professora fica conversando com os demais alunos sentados na sombra. (Fragmento do diário de campo, 10 de novembro de 2010).”
A professora, durante o desenvolvimento das aulas, não consultou ou fez referência a algum tipo de planejamento. Parece não ser uma prática frequente. Essa dimensão fica um pouco mais evidente nas aulas em que Maria decidiu trabalhar o conteúdo musculação com o terceiro ano. Na primeira aula sobre o assunto, a professora iniciou a conversa nos bancos externos da escola, abordando assuntos diversos vinculados à musculação, que não pareceram seguir algum tipo de sequência lógica, nem se aprofundaram. Os trabalhos sobre o assunto, que tinha solicitado aos alunos (apenas dois dos oito alunos presentes tinham cumprido a tarefa) na aula anterior, não foram mobilizados na conversa. Na sequência, a aula continuou como relatado a seguir:
“[...] Às 16h45min, a professora retorna [após deixar uns trabalhos na sala dos professores] e convida os alunos a irem a uma academia do bairro, que se localiza perto da escola. O deslocamento se dá a pé por quatro quadras (durante o caminho, os alunos e a professora conversam sobre assuntos aleatórios). Ao chegar à academia, os alunos esperam do lado de fora, enquanto a professora entra e conversa com o proprietário. A academia é em uma peça pequena, onde havia poucos equipamentos, um tanto velhos. Além de ser pequeno o espaço, havia cinco pessoas exercitando-se no estabelecimento. Ao entrar, posicionei-me perto do rádio, que estava desligado, para poder fazer as anotações, já que era um espaço que permitia uma ampla visão. Os demais alunos tiveram que se apertar nas acomodações. A professora apresentou o dono do estabelecimento, a quem todos conheciam como “Careca”, que também se desempenhava como instrutor. Não tem formação superior na área. O “Careca” mostrou todos os aparelhos que havia no estabelecimento, descrevendo (sem muito detalhe) o funcionamento e o grupo, sempre enfatizando o número de repetições de cada exercício e a importância da respiração durante a sua realização. Durante a movimentação do mesmo na academia, os alunos não tinham muita dificuldade em observar e pouco prestavam atenção para as pessoas que estavam nas três bicicletas e os meninos que estavam trabalhando bíceps. Após a mostrar todos os aparelhos da academia, o proprietário do local enfatizou a necessidade de uma boa alimentação para que os resultados da musculação aparecessem, aproveitou para citar casos de alunos que só comiam “porcarias” e bebiam cerveja que depois de meses de academia não obtiveram resultado nenhum. Após a fala do “Careca”, a professora retoma a ideia de que seus alunos pratiquem exercícios físicos regularmente após saírem da escola. Após a fala da professora, às 17h27min, ela libera os alunos ali mesmo, sem precisarem voltar à escola já que nenhum deles havia trazido materiais.” (Fragmento do diário de campo, 15 set. 2010).
No que se refere ao lugar que a professora ocupa na escola, percebe-se, em linhas gerais, que as aulas da docente são avaliadas positivamente pelos colegas de trabalho. Segundo o outro professor de Educação Física da escola, Maria “realiza um bom trabalho com a turma”.
Particularmente, a direção da escola apoia sua forma de trabalhar, e a expectativa é que ela continue dessa forma. De acordo com a diretora, “a professora realiza um ótimo trabalho, os alunos gostam muito das aulas dela”. Também afirma que a professora tem o que é preciso para o desenvolvimento das aulas. A professora Maria tem apoio da direção para executar qualquer prática pedagógica. Dessa forma, as práticas realizadas aparecem mais como uma opção da professora que por algum tipo de constrangimento imposto pela gestão educacional. Conforme a diretora, “a professora tem plena autonomia e apoio para as práticas que quiser realizar”.
Na mesma linha, os alunos manifestaram, em conversas informais com o pesquisador, que as aulas são “boas, por proporcionarem práticas esportivas [como vôlei e futsal]”, tendo a professora facilidade em transmitir o ensino destas práticas. Em linhas gerais, todos estão conformes com seu trabalho.
Semelhanças e diferenças
Na
leitura dos diários de campo produzidos com base nas
observações das aulas das professoras Joana e Maria
aparecem várias diferenças. Uma dessas diferenças
é o fato da professora Maria não ter perdido a condução
da aula e se manter “ativa” durante as mesmas, distinto
de Joana que, em muitas das observações, apenas
assistia os alunos jogarem.
Por
outro lado, também tem semelhanças. Em ambos os casos
observamos aulas centradas na prática esportiva que se esgota
nela mesma. Não há entre as professoras uma proposta de
ensino centrado nos saberes que a escola deve garantir na disciplina.
Ainda que a professora Maria chegue a encaminhar tarefas orientadas,
por exemplo, ao desenvolvimento dos “fundamentos” da
modalidade, o que poderia sugerir uma Educação Física
tradicional, o “desvanecimento” do envolvimento dos
alunos com os exercícios no transcurso da aula e a pouca
ênfase que a professora coloca na realização e
correção dos mesmos, aponta mais para um processo de
simulação de preparação dos alunos para a
modalidade, que efetivamente um investimento nesse sentido. O que de
fato “sustenta” a aula é o jogo. Numa lógica
semelhante funcionaram as “aulas diferentes” de
musculação. Nas observações, a ideia que
subjaz é que a intenção da professora foi levar
os alunos à sala de musculação e deixar que a
experiência de mexer nos aparelhos desse conta do “conteúdo”.
Nos
casos em analisados, aparece outra diferença gritante. A
valorização da atuação das professoras
por parte da gestão escolar e seus colegas é muito
desigual. As professoras ocupam lugares simbólicos muito
distintos nas suas instituições. No caso de Joana, seu
desempenho em aula, mas particularmente, sua relação
com a instituição, é questionada pela comunidade
escolar, enquanto no caso de Maria, ela é considerada como uma
professora engajada e uma grande colaboradora.
O
conjunto da escola não vê maior problema na forma de
trabalhar de Maria. Aliás, entendem que a professora faz um
ótimo trabalho. Tal fato não pode ser considerado
estranho desde o ponto de vista da cultura escolar, partindo da ideia
que durante muito tempo a Educação Física
cumpria seu propósito assegurando aos alunos um espaço
para a prática esportiva, o que a professora faz de forma
bastante eficaz. Além disso, ela possui uma série de
outros pontos positivos, considerando a dimensão funcional:
não falta, cumpre horários, os alunos são
“controlados” durante sua aula (“não ficam
zanzando por aí”). Contudo, entendemos que é o
fato da professora se engajar em outras tarefas escolares
fundamentais ao andamento do dia a dia institucional, como o cuidado
com a merenda escolar, é o que sustenta seu prestigio na
instituição. O envolvimento com tarefas importantes na
escola e o entusiasmo e/ou expansividade mostrado no dia a dia na
escola parece lhe dar um reconhecimento na instituição
que possivelmente não alcançaria, caso se empenhasse
apenas com aprendizagens específicas de seus alunos na
disciplina.
A
leitura dos diários de campo que relatam o cotidiano de Joana
e Maria aponta outra semelhança, que chama especialmente nossa
atenção. Nos dois casos, os membros da comunidade
escolar, particularmente, os gestores educacionais, não se
encontram muito interessados em saber o que os alunos aprendem (ou
deixam de aprender) nas aulas de Educação Física.
Uma visão tradicional desta atividade pedagógica a
mantém relegada a uma ideia vaga de cuidado do corpo orgânico
e espaço compensador dos esforços intelectuais
demandados pela escola. Impossibilitando, dessa forma, qualquer
estranhamento com o não-ensino dos conteúdos
específicos de responsabilidade da Educação
Física, aspecto comum nos casos de ambas professoras. Nesta
linha, a comparação dos casos permite evidenciar o
entendimento que a atuação do professor e valorizada
pela forma que este se engaja com a escola, algo próximo da
atitude frete aos desafios enfrentado pela instituição
e não necessariamente pelo que ensina ou deixa de ensinar no
tempo/espaço dedicado a isso que denominamos Educação
Física. Aparentemente, em geral, os gestores desconfiam que
questões de muito valor possam ser aprendidas na Educação
Física, logo não guardam expectativas de grandes
investimentos dos professores em suas disciplinas (González,
Fensterseifer & Lemos, 2007), apenas se trata de mostrar um pouco
de atitude e espírito de colaboração.
Estes
casos apontam que o abandono do trabalho docente é
oportunizado ou facilitado por uma cultura escolar que tem
expectativas muito limitadas em relação à
Educação Física e daquilo que os professores
podem ensinar em suas aulas. Uma grande parte da comunidade escolar
não espera muito das aprendizagens oportunizadas pela
disciplina. Nessa lógica, dificilmente coordenadores
pedagógicos (e muito menos pais/mães) solicitam que os
professores justifiquem porque determinado conteúdo específico
foi ou não foi desenvolvido (González & Fraga,
2012). A maioria dos gestores ainda entende que a Educação
Física é um tempo para os alunos extravasarem as
energias acumuladas na imobilidade das salas de aula, tal como o
“banho de sol na prisão” (Fraga, 2000, p. 112), ou
um lugar de preparo da motricidade estudantil para melhor assimilação
em sala de aula dos conteúdos das disciplinas mais “sérias”.
Também é necessário considerar, como afirmam
Pich, Schaeffer & Carvalho (2013), que o abandono docente da
Educação Física potencialmente pode se tornar
funcional à dinâmica da cultura escolar. Um professor
que não tem sua intervenção pautada pelo
propósito de ensinar consegue adequar suas “aulas”
facilmente a mudanças repentinas nas condições
oferecidas ou as necessidades da escola, inicialmente, qualquer
proposição é válida.
Nesta
lógica, o “bom” professor de Educação
Física é aquele que não falta ao trabalho,
cumpre horário, mantém a burocracia em dia, dá
conta dos alunos da sua turma e daqueles que estão soltos no pátio, consegue conter situações indesejáveis
(alunos machucados, indisciplina, uso indevido do espaço,
saídas da escola, etc.), não é muito exigente
(conforma-se com o material e infraestrutura disponível), está
sempre à frente da organização de eventos e
disponível para diferentes demandas da escola (por exemplo,
cuidar da merenda escolar), independente do que proponha em suas
aulas. O reconhecimento destes profissionais parece estar mais ligado
a fatores extraclasse do que às aprendizagens específicas
oportunizados na disciplina. Os conhecimentos tematizados (ou não)
nas aulas de Educação Física parecem ser invisíveis
ao olhar dos gestores escolares.
Agradecemos o apoio do CNPq através de bolsas de iniciação científica e da Unijuí pelo financiamento do projeto.
(1) Brasil, Professor do Departamento de Humanidade e Educação da Unijuí, Integrante do Grupo de Pesquisa Paidotribas
(2) Brasil, Professor do Departamento de Humanidade e Educação da Unijuí, Integrante do Grupo de Pesquisa Paidotribas
(3) Brasil, estudante do Curso de Educação Física da Unijuí
(4)Brasil, Graduada em Bacharelado e Licenciatura em Educação Física, Unijuí
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Recibido: 28-11-2013
Aceptado: 16-12-2013
Publicado: 20-12-2013
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